sexta-feira, 20 de março de 2020

Dulcídio Silva

Dulcídio Silva já imaginava que aquele dia acabaria por ser especial. 
Ao sair de casa cheio de pressa para apanhar o autocarro, esqueceu o chapéu em cima do aparador e de todas as vezes que isso lhe acontecera tinha por experiência que estragava de alguma forma o alinhamento dos astros, cortava a rotina dos seus passos.
Não que fosse supersticioso, ou tão rotineiro que acreditasse que um pormenor diferente dos outros lhe fosse modificar a vida para pior, mas aquela hélice inconcebível que lhe saía do alto da cabeça e que tão bem disfarçava com o chapéu, ou, no inverno, com um gorro de lã merino tornava-se demasiado evidente para quem se cruzava com ele.
Para piorar um pouco as coisas, se fizesse muito vento poderia levantar vôo a meio de uma conversa qualquer, importante ou não, que estivesse a ter no meio da rua.
Quantas vezes, na Costa da Caparica, em dias mais ventosos tivera que se enterrar na areia para não ir parar ao mar.
Felizmente a mulher, atenta, constantemente o avisava, "Ó Dulcídio, olha a ventoínha", mas em ocasiões em que ela não estava presente já aterrara num barco de pescadores, no meio das sardinhas, e uma outra vez, num iate de uns holandeses que até acharam muita graça ao sucedido.
Felizmente, cruzou-se com a dona Arminda que levava à tiracolo uma sacola quase vazia.
Ia precisamente pedir-lha emprestada para a enfiar na cabeça, estava mesmo a puxá-la, desesperado, agarrando a senhora pelos ombros, e pensando que a levaria, fosse a bem ou a mal, quando uma rajada de vento pôs a hélice a trabalhar.
Se olharmos atentamente para o cimo do Cristo Rei, podemos verificar que ainda lá estão os dois agarrados ao monumento.

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