sexta-feira, 20 de março de 2020

Inventário

Belarmino, como sempre, fazia o #inventário no final da semana.
Retirava a esferográfica de trás da orelha, sentava-se em frente à mesa do escritório improvisado e escrevia o que lhe faltava e que teria de encomendar. "Uma caixa de repolhos, duas de tomate em cacho," e por aí fora para que não lhe faltasse nada na mercearia.
Nesse dia a caneta escorregou-lhe das mãos e rolou para debaixo do armário das louças.
Belarmino agachou-se para a apanhar mas quanto mais esticava o braço mais ela parecia afastar-se.
"Anda cá, maldita", falava com o objeto como se ele lhe fosse responder.
Tão entretido estava que mal ouviu a campainha.
Trim! Trim! Fosse quem fosse tocou outra vez e com mais força.
"Ora porra. Nem a esta hora me deixam sossegado", e contrariado, foi à porta.
Quando espreitou pelo óculo ia desmaiando. Do lado de lá da porta estava a criatura mais horrenda que alguma vez lhe fora dado conhecer. A pele era encarniçada e cheia de verrugas, os olhos salientes e lacrimejantes e a boca, de dentes negros e pontiagudos, sorria para ele.
"Cruzes! Mãe do Céu, Pai Nosso, que horror! Que faço agora?"
O tempo ia passando e Belarmino sem coragem para abrir a porta.
Fartíssimo de esperar, o monstro enervou-se e começou a abanar a porta, até, com a sua força descomunal, rebentar com ela e a abrir de par em par.
Belarmino, então, desmaiou.
A criatura, que era feia e bruta mas não era má, pelo contrário, era um doce de monstro, vendo o corpo inerte do homem, resolveu utilizar os métodos de suporte básico de vida e conseguiu reanimá-lo.
Mas Belarmino, quando acordou e viu de novo aquela tromba horrorosa, não aguentou o pavor e desta vez morreu mesmo.
Quanto à caneta, ainda hoje jaz debaixo do móvel.

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