sexta-feira, 17 de agosto de 2018

O Canto

   É certo que nem o gato gostava daquele canto lá de casa.
   Tanto assim era que se punha estático, como é normal nos gatos, muito elegante, com as patas dianteiras e o pescoço esticados, e de olhos fixos naquele lugar.
    De vez em quando baixava a guarda olhando para o chão, ensonado, mas, segundos depois, com um gesto rápido da cabeça e um movimento impercetível das orelhas, voltava a fixar o mesmo sítio.
   Tantas vezes que lá fomos tentar perceber qualquer coisa de anormal, fingindo procurar um livro, ou oferecendo-nos para limpar aquela estante, bonomia que acabou, inclusivamente, por gerar a desconfiança da nossa mãe, mas não descobrimos nada de diferente em relação a outros lugares idênticos espalhados pelo apartamento, e aos quais o bicho não ligava nenhuma.
   Apesar dessa constatação, a de que nada se passava de invulgar, a verdade é que, tanto eu como a minha irmã, começámos a ficar apreensivas com a reação sistemática do animal.
   Ocorreu-nos, então, que dentro das paredes, ou do lado da sala do vizinho, diametralmente oposta à nossa, pudesse estar qualquer coisa de diferente, como uma alma do outro mundo, um fantasma a querer comunicar connosco, ou, simplesmente, um animal de pequeno porte que tivesse ficado encurralado nalgum buraco do qual não nos estávamos a aperceber.
   Sabíamos de antemão, que por aqueles meses a casa estava desabitada, pois tínhamos lá ido numa visita, já que o seu proprietário insistiu em  mostrá-la ao meu pai depois de acabadas umas obras que tinha feito, para posteriormente a alugar ou vender, e nós acompanhá-mo-lo, e diverti-mo-nos com o som produzido pelas nossas vozes embatento nas paredes vazias.
   Para quem fosse um bom trepador, ágil e leve, não era difícil chegar áquele segundo andar, até porque os galhos de um grande plátano desciam sobre a varanda, facilitando a intromissão, o que nos levou a pensar que talvez alguém para lá subisse durante a noite, e lá se mantivesse durante o dia,  quem sabe, dormindo próximo daquela parede.
   Foi então que, numa madrugada luminosa e lunar, numa hora em que os nossos pais dormiam profundamente, nos esgueirámos das nossas camas para ficar alerta, quietos e mudos, esperando passar-se alguma coisa de extraordinário.
   Sentámo-nos com as pernas encolhidas e as costas apoiadas nas pernas do grande tanque de cimento, no que nos pareceu ser o local com o melhor ângulo de visão.
   Quando nos preparávamos para desistir, uma hora depois de nada acontecer, e também incentivados pelo nosso sono de  crianças, forte e poderoso, sobretudo o da minha irmã que era a mais pequena, sentimos um certo movimento, e pudemos observar, nitidamente, duas figuras, exatamente iguais a nós, incluíndo os pijamas, o dela com ursinhos espalhados pelo tecido, e o meu com pequenas flores coloridas, mas com uma estranha leveza, a qual nós não possuíamos, nem de longe nem de perto, percorrendo muito rapidamente os ramos da árvore, mal utilizando os pés, e sem quaisquer apoios, quase voando, e entrando assim, subrepticiamente, para o interior da casa.
   Á esquerda da sala deserta, e na esquina correspondente, deitado mas atento, como sempre, o nosso gato de estimação esperava tranquilamente por eles.







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