domingo, 12 de agosto de 2018

A Continuar


Agarrou na pasta e desceu a escada, devagar.
Já pela rua fora, encontrou a vizinha da cave a quem cumprimentou com um vulgaríssimo "boa tarde",  sem mais conversa do que essa, faltava-lhe a paciência, para conversas tinha os seus papeís e o café que ia beber.
Sentou-se  na pastelaria da esquina, felizmente o seu lugar preferido estava livre, e apoderou-se da mesa, entre a janela e a montra das bebidas, onde havia mais luz e era possível ver as pessoas a passar lá fora, ao ritmo da grande cidade.
Abriu a pasta, o couro estava gasto e sujo, tinha a marca dos seus dedos, foi ao bolso interior do casaco buscar uma caneta, retirou-a e colocou-a sobre a mesa.
Desde o primeiro momento que lhe notou os pormenores, a expressividade do rosto, as mãos jovens, gretadas e frias, não obstante lhe servisse aqueles cafés amargos e quentes, com o líquido preto a fumegar.
Foi o que escreveu nesse dia, as impressões todas que tudo lhe causou, a rapariga, atarefada, a servir as mesas cheias de gente, a velhota que passou, atrasando mais ainda o seu passo vagaroso, e franzindo os olhos para tentar, através dos vidros, ver lá para dentro.
Ainda tiveram tempo para se toparem um ao outro, até que alguém deu um toque à frágil senhora, o que a obrigou a seguir caminho.
Tinha um lenço verde escuro em volta da cabeça, atado à frente.
Perante aquele reconhecimento enigmático, mas de alguma forma familiar, agarrou a caneta com a mão esquerda, sorveu o um golo de café, e pôs-se a pensar numa nova história que iniciou ainda ali, naquelas folhas dispersas, que serviam para isso mesmo, para começar enredos quaisquer que depois em casa trataria de orientar.
Estava neste pensamento, com a mão direita a apoiar a cabeça, quando lhe pareceu ver o mesmo lenço verde do outro lado da estrada, no passeio oposto, e, na verdade era ela, que atrasava novamente o passo, olhava para trás, e mais uma vez se fixaram nos olhos um do outro.
Saíu o mais rapidamente possível, arrumou apressadamente a papelada, deixou uns trocos em cima da mesa, atravessando a estrada ao mudar o sinal. Nunca tão depressa galgou os traços brancos da passadeira.
Ainda conseguia vislumbrá-la, haveria de a alcançar.
E lá estava ela, em frente à montra, e debaixo do toldo para se proteger do sol.
Esperava.
Agarrou-lhe por um braço, com as suas mãos ossudas, mas não disse uma palavra. Tinha os olhos pequenos raiados de vermelho, como se tivesse chorado a vida inteira.
 Depois afastou-se, até desaparecer na multidão, deixando-o imóvel, incapaz de a seguir, por esse tempo preciso e por um motivo qualquer inexplicável.
Foi o que escreveu quando, mais tarde, olhava pela janela o movimento na rua, à porta de sua casa, após  subir o curto lance das escadas e encontrar um outro vizinho que lhe falou da temperatura amena e agradável, e ao qual deu uma resposta breve.
De quando em vez, fazia uma pausa para recordar as expressões faciais da jovem que o atendeu na pastelaria, e o seu sorriso programado, ou o trote dos sapatos nas pedras da calçada.



















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