terça-feira, 14 de agosto de 2018

#Postal_de_férias VII


"Nesta fase mais aguda receito-lhe um conto por dia,  e um mínimo de três páginas de um bom livro. Vou-lhe dar uma lista dos que me parecem melhores para o seu caso específico.
Quando se sentir um pouco melhor, poderá escolher o que quiser. Deixará de necessitar de uma dose tão forte.  Continuará a ser obrigatório o tratamento diário, mas menos intenso e mais aleatório.
Saiba que será para toda a vida.
Vamos lá a ver se  conseguimos pôr essa cabecinha a funcionar um pouco melhor...!
Acredito que sim. Confio nos efeitos benéficos da prosa. Um produto cem por cento natural.

De cada vez que um automóvel passava, uma sombra movia-se na parede, e foi a partir dessa realidade inquestionável que me veio á memória:
Do meu lado direito, o condutor tirava macacos do nariz pacientemente.
Procurei não olhar, só o fiz porque, naquele trânsito parado, não havia muito com que me entreter.
No automóvel da frente, duas crianças encantadoras faziam-me gestos obscenos com o entusiasmo estúpido de algumas crianças, revirando as mãos gorduchas com uma certa dificuldade.
São necessários anos para ter mãos treinadas. Procurei desviar os olhos.
Uma árvore, do outro lado da via rápida, tombou para aquele lado, ficou pendente sobre a estrada, e alguns dos seus galhos afloravam agora o capot do meu carro.
Podia ouvir o ruído metálico da chapa a ceder, sobrepondo-se ao bater constante da chuva.
O vento não dava tréguas e a árvore balançava perigosamente.  Procurei não me assustar.
Quando voltei a olhar para o lado, por falta de alternativas, onde anteriormente estava o homem dos macacos, já não se encontrava ninguém, mas, segundos depois, e completamente encharcado, batia no meu vidro com os nós dos dedos.
Queira lume para fumar um cigarro. Procurei no porta luvas.
E no lugar de onde os meninos me faziam gestos pegajosos de rebuçado, estavam agora um cão de laço encarnado, e um gato preto que me fazia um manguito com as patas dianteiras.
A árvore abateu, mas os dois metros que percorri, apenas porque destravei o carro, foram condição suficiente para que o seu tronco  tivesse atingido sómente a parte de trás do meu veículo.
Do buraco que provocou na bagageira saíram, para a tempestade, dois unicórnios amarelados do tabaco.
Quando veio o sol, voltei a ver os miúdos, que seguiram a grande velocidade. Certamente um dos pais é que carregava no acelerador, já enervado, enquanto as outras viaturas também iniciavam a marcha, sendo que um deles era uma carroça de três bois, e outro, um cisne encantado, munido de um potente  motor, e que passou por mim tão rápido quanto os cisnes encantados, com motor, conseguem voar.
Só eu fiquei ali presa, até a árvore se recompôr.
Podia demorar vários anos, foi disso que, na altura, tive medo, mas felizmente resolveu-se, lá mais para a noite.
Procurei, e procuro, ainda agora, separar este preciso acontecimento, do real movimento das sombras na parede, e seguir o meu percurso habitual,  preferencialmente  com uma rádio a tocar, e, claro, eliminando os pormenores desnecessários.




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