sexta-feira, 1 de junho de 2018

.O #vale dos poetas

Duas vezes por dia, os tratadores encostavam-se à vedação de segurança e despejavam o conteúdo dos grandes baldes cá para baixo.
Nós, alguns muito agressivos, corríamos na sua direção, tentando abocanhar as melhores, ou as que mais nos interessassem, por um motivo qualquer, que podia ser pessoal e íntimo,  ou apenas uma questão de palato mais ou menos apurado.
Algumas partiam-se ao embater no chão, contra a a pedra do comedouro, devido à força da gravidade, porque a queda ainda era muito grande, e então as mais frágeis, ou porque mais exóticas, ou porque maiores e portanto mais pesadas, quebravam-se em dois ou mais bocados.
Recordo-me de, um dia, ter apanhado um pedaço de uma, "quí", e, só muitas horas depois, ter encontrado a um canto, primeiro o "exe", E depois o "vel", e só à noite me ter sido possível reconstituí-la. "Exequível". Das mais saborosas. Juntei-a e comi-a com satisfação, antes de ir dormir. Um autêntico manjar dos deuses.
Das nove às vinte, o parque estava aberto a visitas.
As pessoas juntavam-se em grupos apalermados, junto às grades, as crianças comiam gelados e os adultos, munidos de telemóveis, tiravam fotografias.
Os de nós mais irreverentes, provocavam-nos, mostravam as garras, rugiam, lançavam pequenos objetos, para que eles proferissem palavras de raiva, ou medo, alguns diziam palavrôes muito alto: "puta que pariu" "cabrão do poeta, acertou-me!", e assim, podíamos, no dia seguinte, obrigar a que nos juntassem à refeição novos  alimentos, ricos em proteínas.

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