quarta-feira, 18 de novembro de 2020

 Sempre fora assim. Lá fora rastejavam criaturas cinzentas camufladas pelas sombras da noite e ele, sentado à secretária, olhando-me por cima dos óculos.

_Então, menina? O que foi hoje?__

_Os cavalos selvagens dormitam debaixo do salgueiro grande, os ratos atravessam o caminho de terra batida, o cão do Anselmo ladra  à passagem do fantasma da casa branca, enquanto o fantasma segue a sua vida, indiferente ao nervosismo do animal causado pela sua presença. Os pirilampos tentam, em vão iluminar as ervas,  a aldeia dormita sem grandes precalços, tudo está pousado tranquilamente na página doze, nem uma página para trás, nem uma para a frente, Só um livro é que ficou na beira da cama e a criança, ao mexer o braço, bateu-lhe com o cotovelo e ele caíu ao chão, mas nem se abriu, nem se estragou, impecável. Amanhã alguém o há-de apanhar e colocar no sítio._

Depois de acabar a explicação, senti-me um pouco nervosa. Intuía que não lhe ia agradar a incorreção do procedimento, sabia, por ocasiões idênticas, que bastava um pormenor para desiquilibrar a sua suavidade, o seu ar bondoso, a total disponibilidade que demonstrava no seu papel de guardião, 

De facto, não podia ter sido mais expressivo, nos pequenos trejeitos, no levantar quase impercetível de uma das sobrancelhas, no lábios que pareciam tornar-se  mais finos, talvez pela contração involuntária dos cantos da boca. 

Endireitou um pouco os óculos num tique que já lhe conhecia, óculos esses que, aliás, acabavam por ficar quase sempre na mesma posição, e perguntou secamente

_Porquê? Porque não trataste logo de corrigir essa situação, não desfizeste o erro?_

_Não tive tempo._ Justifiquei-me como pude,_ Ainda voei até cá, no nosso mais veloz cavalo alado, galopei até sobre as nuvens, mas não cheguei a tempo. Vai ter de ficar assim para amanhã de manhã. As minhas desculpas._

_Atentas contra as nossas vidas, deixando a possibilidade de deitarem o livro fora, ou de o estragarem de alguma forma. Viste qual era? Nem importa, isso. Se não formos nós, será pelo menos um do nossos,

_Acaso queres desaparecer do planeta? Onde estiveste? Imagino. Junto ao riacho zumbidor, conversando com os faunos, perdendo tempo, distraída, e em todo o lado tudo a poder acontecer. Tens que estar mais atenta. É só o teu papel. Está explicado na página vinte, acompanhado de umas das mais belas ilustrações que já vi. E estamos lá, embora muitas vezes a nossa existência permaneça nas folhas, ou se esconda atrás das árvores e das aguarelas do rio, e ninguém dê por nós._

_A estátua de bronze da praça da aldeia não parece descontente por acordar durante a madrugada e estar umas horas bem viva, os gatos pretos  vieram, em conjunto, dar-me os parabéns pela liberdade. Desacorrentá-los das folhas não me pareceu nada mal._ respondi, sem medos, irritada com a sua prepotência.

Levantou-se bruscamente da cadeira. O seu aspeto débil e envelhecido não faria supor movimentos tão ágeis, mas, a verdade é que no espaço de um escasso segundo estávamos frente a frente. Falou-me com a voz alterada, o meu atrevimento era imperdoável, Nada era, afinal, mais importante do que preservar a eternidade dos personagens.

_Sais agora mesmo e vais colocá-lo no sítio. Acordas alguém naquela casa, pode ser a criança, pode ser um dos pais, ou o irmão, e farás com que passem pelo livro e o apanhem do chão. Se vires uma menina de laçarote vermelho armada em curiosa, bisbilhotando todos os cantos, agarras nela e conduze-la para dentro das páginas. É lá que ela pertence. Só tens que te introduzir sorrateiramente nos sonhos de um deles. Tu sabes fazer isso. E até muito bem._

O elogio amansou-me um pouco. Anuí em sair outra vez para  rondar as criaturas adormecidas, as paredes cinzentas dos edifícios, até chegar ao quarto, apanhar o livro de alguma forma, e procurar a criança intocável e eterna que não deve abandonar a sua história.  Percebi, do que me fez entender, que o meu papel como seu braço direito, não podia falhar, ainda que para isso prescindisse da minha própria liberdade.

Esfumei-me em neblina e  percorri as ruas e os caminhos do lugar. Entrei pela janela semi aberta da cozinha, passei pelas fresta entre a porta e o chão, e provoquei um pequena corrente de ar que içou o livro nas alturas como se tivesse adquirido asas no lugar das folhas. Após um esvoaçar hesitante pousou na beira da cómoda, onde havia um retângulo vazio, e onde haveria de esperar, depois de devidamente apreciado, pelo regresso ao espaço na estante que lhe era dedicado.

_Não te esqueças, apanha a rapariga do laçarote._tinha-me gritado ainda, da porta da rua. _ Não se pode perder por aí, e logo ela, que sofre de curiosidade compulsiva. Apanha-se neste mundo, do lado de cá. E para mais com aquelas vestes impróprias, num instante dão por ela e caçam-na com uma rede de caçar fadas, que ainda é o que têm de mais eficaz._

A um canto escuro ao lado da janela, algo se moveu. Nesse movimento, um laço encarnado ficou visível, surpreendido pelo luar que entrava, opaco, pela janela. 

Os olhos inquiridores da menina encontraram, redondos, a inexistência dos meus, no meio da neblina artificial que me dava corpo.

Percebeu, sem quaisquer palavras, não eram necessárias, que alguém a iria privar da liberdade, obrigando-a a recolher à sua dimensão, e que esse alguém era eu, efémera e volátil, sem qualquer sentido ou noção de justiça, ou partilha da sua felicidade pela descoberta. A sua vida podia, afinal, não estar presa às garras de um livro.

E eu, não fui capaz de lho impôr o degredo, chamei, assobiando, o recém nascido dragão vermelho e pedi-lhe para a esconder, o tempo necessário até eu vencer o velho guardião. 


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