quinta-feira, 12 de novembro de 2020

#  Visualizar   AtualizarUrucubaca ou Feitiçaria

 Recebeu-me com os modos que sempre lhe conheci.

 Polida, sorridente, evasiva, com um sorriso franco, não tão franco que não lhe reconhecesse uma certa invulgaridade, ou um segredo bem guardado, escondidos subtilmente naquele sorriso aberto, na voz límpida e serena, semelhante em tudo à das pessoas que nada têm a esconder. 

Tínhamos subido, eu atrás dela,  umas escadas estreitas e bonitas que davam acesso à habitação propriamente dita e que conduziam quase diretamente, apenas se atravessava em dois passos um pequeno hall iluminado artificialmente e que fazia brilhar o ambiente envernizado, a uma sala de grandes janelas que nos ofereciam a cidade inclinada deslizando até ali.

Eram tão enormes, as janelas, que me senti dentro de uma gota que tivesse levantado da terra, ou de uma folha pendente, devagar, desafiando as leis da gravidade, e pudéssemos viver dentro dela para ficarmos ali pendurados o tempo que nos aprouvesse, no meio de um sonho inquieto.

Curiosamente, e apesar de o edifício se encontrar na baixa da cidade, apenas a geometria dos telhados intercetava a paisagem que trespassava a transparência espessa do líquido das paredes, nada de portas que se vissem abrindo e fechando, nada de gente passeando, nada de árvores,  só as aves tocavam as pontas dos candeeiros nos seus passeios e  as pontas dos candeeeiros arredondavam de luz as telhas até ao topo do outro monte.

E havia uma cor violácea no céu, como nos países das noites invadidas pelos dias, esses países em que os dias engolem a escuridão deixando-a num tom indefenível.

Reparava eu que as lâmpadas elétricas ponteavam os vidros e todas as superfícies refletoras, reverberando pela encosta acima, potenciando a paisagem sonolenta pintada de ambar por todo o lado, ou em minúsculos pontos, ou com grandes pinceladas  sobre  o fundo azul e sobre as  cores do ocaso, roxo e cor de rosa,  enquanto ela me oferecia um chá, ou um café e deixava as suas pegadas silenciosas marcadas no chão impecavelmente macio.

O chá veio fumegante, duas mini piscinas de água quente e ocre em chávenas redondas dentro de um tabuleiro, aproximou-se do meu olhar pela janela, viu a minha curiosidade nas telhas refletidas no líquido da tisana, cujo aroma se insinuou pelo espaço.

O vidro transparente da água era tão fino, sem qualquer aresta, que me era impossível tirar os olhos delas, dessas cores oníricas que entravam e saíam da casa da mulher de sorriso aveludado.

Uma gaivota destacou-se da imagem por não lhe pertencer, não se misturava bem na miscelânea de tons violáceos e acinzentados, e tal como ela em dias de tempestade, ou pousada, ou andando na praia, na nossa real praia, cheia de sol, nas minhas noites escuras e amedrontadoras,em que se encostava a um beiral, ou dormitava ao sabor da ondulação do mar calmo, com as asas bem encostadas a si, os olhos fechados e as patas recolhidas, por isso se destacava, por lhe ser necessário o mar para viver feliz.

Quando falava, quando falava, a mulher dissemelhante salientava-se tal e qual como a ave, a sua voz inumana tilintava nos cristais. o chá substituía a falta de sol, a ausência da escuridão da noite mais escura, a madrugada sem sombras ponteadas e revivificadas pelos remorsos dos eternos amantes, crueís e em chamas, abraçados para lá do visível.

O céu teimava, em apoderar-se do quotidiano dos outros, a casa pingava brilho do primeiro andar daquela sala, não eram quaisquer águas furtadas, com diminutas entradas de luz, que nos propiciavam aquelas cores, 

Por ali, ela cirandava, sorrindo, como se a sua história fosse a mais importante de todas, e as suas cintilações elétricas fossem únicas, e os alaranjados fossem apenas seus, como se ninguém os tivesse verdadeiramente visto por outros lugares, 

Sensível às tonalidades invulgares da atmosfera e à acústica da sua voz, eu olhava, pasmada, para as linhas horizontais riscando as colinas e para a ausência de amarelo, recorria aos mais variados sentidos para entender a luz artificial, deixava-me encandear pelo extraordinário que brevemente  me encantou.

As flores vibrantes do seu vestido branco substituíam com exatidão as velhas flores do campo, inúteis e desaparecidas, não havia nenhuma em toda a região, podíamos comprová-lo ao rodarmos o corpo sobre nós próprios, trezentos e sessenta graus, e não encontrando uma só em todos eles.

Quando a gota de água não conseguiu suportar por mais tempo tamanhas impossibilidades, desceu, vertical e vagarosamente até ao chão.


 





 

Sem comentários:

Enviar um comentário