terça-feira, 3 de novembro de 2020

Maquilhagem

 Eu focava os olhos nelas, naquela mancha viva e verde 

que bamboleva conforme as correntes de ar, 

via-lhes os movimentos infligidos pelo vento, 

via-lhes as caras de árvore, tristes no inverno.

e pesarosas no outono.

Via o chão repleto de folhas incómodas e multicoloridas, 

que as pessoas preferem, malogradamente, não pisar, 

não encher as sarjetas de mantos castanhos, 

que entopem as saídas de água, 

para os automóveis não avariarem nos charcos, 

para que a cidade de cimento não desapareça. 

Eu tinha as raízes iguais, por empatia com o seu silêncio, 

por simbiose com a sua seiva que parecia 

fluir-me nas veias sob a forma viscosa de sangue.

Distinguia-me da sua imponência 

 não porque não tivesse a terra presa aos pés, como elas, 

e as flores selvagens e miúdas espalhadas em meu redor, 

distinguia-me apenas quando, excecionalmente, 

dava uns passos curtos, incertos e particulares.

Revia-me na sua força, que rebenta as estradas, 

serpenteava com elas debaixo das construções 

na busca de minerais imprescindíveis para a minha subsistência.

Eu mirava-as, tornava-as meus ídolos, amava tudo quanto lhes respeitasse, 

os pássaros que as agitavam levemente, 

sentia-me tão prisioneira da sua imobilidade como elas, 

sentia igualmente a  sua impotência para fugir de uma guerra, 

de qualquer guerra pequena. 

Era tão vulnerável como um plátano adamastor, ou um velho castanheiro.

Gozava do sol, como se tivesse folhas perecíveis e galhos 

que formassem rendilhados 

indiscutivelmente belos no inverno, 

e também eu aproveitava os ocasos para me aquietar, 

para quadricular os raios de sol em milhares de joías luzidias nos dias brilhantes.

e também era eu que tinha folhas perdidas pela casa 

como o outono lá fora pertubaria as suas copas, agitando-as,

 para que as poucas palavras que ainda murmuram caíssem mortas.







 

 

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