segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

cncncn ( publicado em rascunho II )

A voz irritante da vizinha trouxe-o de volta à realidade. Tinha que terminar a história para o dia seguinte, momento em que a enviava, recheada de esperança, os sonhos do poeta resumidos ao gesto de carregar numa tecla. Aceite, ou não.
Até lá, até ouvir a vizinha com a sua voz estridente, a dizer coisa nenhuma, tinha prosseguido com o desenrolar das vidas que inventava, etéreas como o vento dissolvente que se entrelaçava nas coisas, e desaparecia, de uma hora para a outra.
Mas lá estava ela, interrompendo o curso habitual das vogais , destoando como uma borbulha na pele jovem  e imaculada de um pêssego rosado.
A mulher calou-se. No momento em que se calou, presumiu ele, da sua secretária da sala de num segundo andar em frente à serra submersa, estar o interlocutor respondendo, num tom aceitavelmente baixo para que, lá em cima, não fosse possível ouvir.
Para que os outros, os das varandas das azáleas e das camélias brancas, pudessem ter alguma paz.
O interlocutor acabou por se despedir num outro tom, mais alto, seco e autoritário, para  cortar o matraquear de palavras da outra, para não lhe deixar possibilidade de resposta.
O silêncio instalou-se brutal, com os automóveis a produzirem um silêncio invulgar ao rodarem tranquilamente pela estrada. Enquanto um desaparecia, outro se aproximava, em sentido contrário,e as moléculas comunicavam entre si, dançavam na atmosfera, acompanhando os movimentos ondulatórios do som, Voltou a mergulhar nas entrelinhas. Foi a um fundo tão longínquo, que viu os peixes cegos, que o não viram a ele, e que habitam as profundezas sombrias do mar.
O poeta tinha então, grandes poemas e sonhos pequenos, pensou, ou grandes sonhos e poemas pequenos, imersos. Nalguns contava  apenas histórias simples e preguiçosas, dengosas que iam descendo por ali abaixo. Noutros não. Noutros as árvores recebiam as aves ou olhavam o vôo de uma  águia perdida sobre a cidade,
A voz da vizinha irritava-o de tal forma que se desconcentrava, reduzia-lhe o óxigénio no sangue, e tinha que vir ao de cima, à superfície, para descansar um pouco e poder respirar.
Enquanto alguns anjos  intervinham durante a  noite, silenciosos, rodeando as camas, e depois nem procurava as palavras, elas vinham ter com ele por vontade própria. Metiam-se no silêncio como a voz da vizinha, contando peripécias das vidas atrás das portas de cada um, ele espreitava afastando as cortinas, via as duas à esquina, e os tejadilhos dos automóveis molhados da chuva,
É muito inverno, forte, e só tendo a coragem de calcorrear os passeios se encontra uma ou outra folha perene que jaz moribunda ensopada numa poça de lama.
A vizinha já teria ido à sua vida, despachada pela outra, apressada, que, até ao meio dia, teria que reconhecer as cinco sereias.  de entre as multidões de gente que passavam por ali. Estava atrasada. Era o seu trabalho dragar o líquido azulado do mar, #zilhões de gotas de ondas que se desvanecem, deixando as suas vidas por ali.  na espuma,  interrompê-las no seu final feliz, pelo que nem tinham conta as vezes que já o observava, misterioso, enorme e desconhecido.
Foi apanhado de suspresa pela chuva, quando saíu à rua para beber um café, interrompendo levianamente a produção da história. Deixou-os ficar submersos, matou-os, não desligou a máquina, não gravou as palavras, e os seus corpos surgiram à superfície, boiando na ondulação de um azul que não voltaria a conseguir escrever.
Nem dez passos tinha dado, já a mulher faladora estava de regresso, não havia como lhe fugir, Lembrou-se de lhe contar uma perpécia qualquer inventada para a fazer calar. Ficaram para sempre, conversando.
Falaram do riacho que enche no inverno, e cujo caudal leva os patos em passeio com os seus filhos pequenos. Falaram  da oliveira ao cimo da vila, sombreando a fonte, dessa história já lá iam  dois anos e que, tal como esta, tinha desaparecido por causa das páginas que não param de passar, do nome dele, irrelevante e abstrato, gravado no banco que posteriormente pintaram de castanho, e da tinta líquida que preencheu todos os sulcos e ranhuras, de secagem rápida, e que, num ápice, tornou homogéneo  o aspeto da madeira.
Era já de noite e ainda lá estavam, um em frente ao outro, com os peixes a rodearem os seus corpos imóveis e verdes, enquanto as suas bocas fechadas produziam os sons inaudíveis das baleias e dos golfinhos.









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