sábado, 10 de novembro de 2018

Uma Velhinha

Os sofás eram muito baixos, por isso a senhora ficou enterrada naquele conforto sem se conseguir levantar.
A seguir foram jantar, e as cadeiras eram muito altas e elegantes, e a mulher ficou pendurada sem conseguir de lá sair.
"Ò Pedrito, ajuda-me aqui, ó Joana, alcança-me ali a bengala,
Viste como o púcaro ficou brilhante, Joaninha ? E a bitola? Aprendeste?
Estou #quilha(da) com isto. Não ouço  nada do que me dizes"
De cada vez que insistiam num aparelho auditivo, ela recusava, o quê? Dissimulava que não ouvia a pergunta.
Uma vez até lhe deram um recadinho com tudo lá escrito  para lhe retirarem a hipótese de fingir não perceber, mas ela, num canto do mesmo papel, desenhando muito bem a frase para que pudessem apreciar a sua bonita caligrafia, e demorando uma eternidade a responder, escreveu:
"O quê? Não entendi."O quê? Não entendi.".
Duas vezes para apurar o desenho das letras.
O primeiro que tinha experimentado, fazia interferência com a televisão, sobretudo nas vozes mais agudas de algumas locutoras de que gostava tanto, tornando-se insuportável.
Ainda ouve uma segunda tentativa em que se cedeu à experiência, mas neste, a regulação do som era impossível.
Os filhos diziam-lhe: Ó mãe pôe à altura que tu quiseres",  mas na posição três, que podia controlar através de um comando que guardava no bolso, não se ouvia praticamente nada, e na quatro já os decibeís atingiam uma potência que lhe chegava ao sistema nervoso central.
À tarde, depois das comezainas, dos risos, ouvia os risos, que tinham qualquer coisa de audível, sobressaíam  do ruído compacto, voltaram a ajudá-la a sentar-se no mesmo canto, baixo mas cómodo e aconchegante, onde, com a boca entreaberta, se deixou dormitar pela tarde fora.


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