quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Meu Querido Boris Vian

As três irmãs viviam numa casa, ao cimo da rua, suspensa no ar.
Naquela tarde desceram  juntas, era raro verem-se juntas a descer a rua, habitualmente descia uma de cada vez e encontravam-se em frente à loja de corações que fazia esquina com a grande avenida por onde passavam os comboios sem carris, os autocarros sem rodas e as motoretas com asas de morcego, muito em moda naquela época de crise financeira, por não necessitarem de grande quantidade de combustivel.  Duas ou três moscas por dia era suficiente para percorrerem uma enorme quantidade de quilómetros.
Birra, #Ópio e Aguardente, eram muito educadas. Cumprimentavam a vizinhança sempre com um sorriso nos lábios, Ópio não, porque não tinha lábios. No seu lugar podia ver-se uma chave de parafusos que sempre tinha o cuidado de pintar com um baton muito encarnado para ficar mais bonita.
Mas, dizia, sendo filhas da classe média alta, estavam, desde pequenas habituadas a uma razoável educação, e então, quando passavam por alguém conhecido, cumprimentavam sempre. Birra dava um salto mortal à retaguarda, Ópio atirava o que levasse na mão para o alto, normalmente a mochila que voltava a apanhar e a colocar nas costas, e Aguardente elevava o corpo um metro ou dois do passeio e, quando aterrava, fazia uma grande vénia, tocando com a testa no chão.
O sr. Cabranaço estranhou terem passado por ele sem quase o verem, como se tivessem todas o pensamento ocupado com alguma coisa preocupante.
Ficou a vê-las seguirem o seu caminho, com passos decididos, muito embora dessem dois para a frente e um para trás, numa coreografia a que ele não estava habituado.
Viu-as entrar na loja dos corações, e de imediato, saírem a correr com um fígado de porco ainda a pingar sumo de laranja, e no segundo seguinte, o dono da loja, o sr. Palermoíde, assomou à porta com uma faca na mão.
Meia hora depois, a polícia, fardada a rigor para ocasiões de assalto, fatos de mergulhador aos quais não faltavam as barbatanas, apareceram no local, mas já Birra, Aguardente e Ópio se encontravam muito longe, sentadas no telhado da igreja, a tirar das unhas os restos de sangue.


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