sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

SERÁ ESTE?

 As ruas de Lisboa também nunca são as ruas de Lisboa, e como a noite é a mãe de todos os medos, foi com algum receio que me atrevi a passar.

Quando o vi, lá ao fundo, desciam as pedras cinzentas pela rua abaixo, passavam a curva, quase saltavam do chão, pareceu-me que o seu corpo era demasiado grande, tinha um fato azulado que rebentava pelos ombros, de onde, dos seus  pontos equidistantes,  aflorava aquilo que me pareceu ser uma cabeça de tamanho anormalmente pequeno, mas imaginei que fosse do ângulo que o meu raio de visão fazia relativamente à entrada do restaurante, ou de algum reflexo de luz enganador.

As ruas de Lisboa também nunca são as ruas de Lisboa, sobem e descem, geometricamente, os topos das colinas arredondam em parques e cruzamentos, cinzentos, por vezes.

Aquelas grandes línguas amarelas dos candeeeiros a lamberem as vielas, o homem estava de costas quando passei por ele, indiscutivelmente estranho, parecia uma figura fantástica que tivesse escapado de um qualquer universo ainda por encontrar.

Eu, no momento do nascimento, abrira os olhos para ver a luz do dia, não imaginara uma janela como aquela, rente à cidade, nem os passos incontáveis que nela haveria de dar, nem sequer fantasiava tantos ratos, nem por um momento suposera que um dia carregaria monstros dentro de um livro e  que os transportaria debaixo de um braço comprido e fino, bem maior do que era de esperar.

Encostado à esquina da porta, de costas para mim, confirmava-se a desproporção. 

Não consegui ver-lhe a cara, passei silenciosamente, com medo apavorado da possibilidade de ele se mover, imaginava-lhe as passadas, uma das suas para três das minhas, as ruas de Lisboa também nunca são as ruas de Lisboa, nem se chega aos miradouros ou ao sol, quando temos nas mãos livros cheios de histórias incómodas, quase escorregando após inclinação perigosa, a descida é íngreme, mesmo quando as ruas de Lisboa são elas mesmas, o movimento das ancas desiquilibra-os e não queremos que caiam, desamparados.

 




 




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