quarta-feira, 20 de maio de 2020

Rasuras

Limpeza das pedras, uma a uma, para não arranjar sarilhos. Nada. Zero.
Um cheiro abominável só desapareceu, esfumou-se, quando abriu a janela toda para trás.
O ar circulante acabou por dissipar o que havia para dissipar, e lá foi ele, contrafeito, rever o texto pela milionésima vez.
Todavia, o sem número de vezes que o fez, não se revelou suficiente para lhe topar as imperfeições.
Era um mau estar impossível que o perseguia vezes sem fim. A constatação de que morreria igual aos outros, com um medo igual ao dos outros, mais uma morte vã.
Olhava para aquilo tudo e via uma imagem invertida, ininteligível, estariam as palavras viradas ao contrário, com os sentidos certos a debaterem-se contra o reflexo errado do espelho?
Uma verdadeira guerra que perpetuava sem querer.
Para não incomodar muito, não ia agora incomodar as pessoas com os seus disparates, participava sózinho no combate das letras contra o tempo, e acabavam perdendo todos juntos, por falta de justificação.
Nada de novo. A vergonha e o medo sem força nenhuma, superados pela vontade, como nos vícios delirantes ou nas dependências calmantes, essa vontade que não o largava.
Corria-lhe nas veias, ou entrava por elas, talvez, nunca sabe o que precisa, nada, zero, qualquer coisa que se envolvia devagar no sangue, numa transfusão sucessiva de nutrientes imprescindíveis enriquecendo o fluxo, que se obrigava depois a um ritmo perfeito. Disparates.
O maior logro a que já alguma vez assisti.
Então, e por causa da limpeza das pedras, uma a uma, e para não arranjar sarilhos, voltava a colocar os olhos no que estava escrito.
Primeiro rodava-os abrangendo a parte possível do escritório, depois espetava o nariz em várias direções para inspecionar o regresso do aroma a coisa nenhuma que tanto lhe agradava, e tentava concentrar-se, mais uma vez.
Tendo a janela aberta, o espanta espíritos tilintava de quando em vez. Eram os versos deslocados, presos por fios,  pequenos avisos no meio daquela trapalhada toda, "olha que isto não é uma brincadeira. É melhor soltares-te de vez.
Foi condição suficiente para garrar em si e partir para o outro lado do vento.
Sentou-se o mais confortável possível no ponto mais distante da capacidade dos seus olhos, no lugar mais ao fundo da paisagem, com os antebraços apoiados num parapeito desconhecido, e observou.
Focou bem os olhos. Lá estava ele, bebendo pequenos golos de água, sentado em frente ao computador.
"Se me tivesses deixado fugir atempadamente, não teria de usar estes binóculos para observação de pássaros, e, após uma quinta feira diferente, numa terça feira abominável, tudo voltaria a acontecer.

20/052020


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