sexta-feira, 22 de maio de 2020

O Bom Vento

O vento demorava a chegar.
Vinha do mar mais ao fundo
tocava ao de leve a sua superfície
passava as fronteiras de espuma
passava a areia molhada
rasava e rasava o areal
e atingia as dunas
onde levantava os mais finos grãos.
Chegado à aldeia contornava o casario
entrava pelas casas
que o deixavam entrar
entrava pelos vidros entreabertos,
galgava os telhados,
vinha pela ponte,
espreitava para dentro dos automóveis
fazia esvoaçar madeixas de cabelos
de mulheres
que contemplavam o brilho prazeroso do sol,
ia flutuando sobre a terra,
ia bailando, com a sua lentidão exagerada
os seus bailados invisíveis
até surpreender as folhas das árvores
do outro lado do rio
e fazê-las bichanarem os seus assuntos de folha
que não são para aqui chamados.
Chegado ao local, assumia novas direções,
e uma nova estratégia para a liberdade
completamente diferentes do seu habitual.
E, no lugar de entrar por todo o lado,
vinha direito a mim pela rua principal,
passava os plátanos, sem lhes tocar,
nem uma flor se mexia nas trepadeiras dos jardins,
porque primeiro tinha que me alcançar.
Eu esperava por ele, de pé,
ou sentada na ponta da varanda,
a ver a roupa a enrolar-se sobre ela própria, no estendal,
a senti-lo na pele desprotegida da cara,
nas mãos agarradoras de coisas, nos olhos secos.
Era assim que acontecia, constantemente,
o vento era mesmo assim, tinha imperativos.
Primeiro, conversava comigo,
e só então se desvanecia, até um outro dia,
quando quisesse regressar.








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