domingo, 3 de maio de 2020

RASCUNHO

A Lídia ligou à cerca de vinte minutos.
É normal ligar para avisar que vem mais tarde.
O jantar está no forno e preparado inteiramente. É só aquecer um pouco no microondas, isto se por acaso já tiver arrefecido muito.
Se ela não comer, tratarei de lhe dar uso amanhã,  umas sobras de comida têm sempre proveito.
Enquanto espero por ela, entretenho-me a limpar algumas coisas sujas. Só pormenores, nada de grandes movimentações, que envolvam baldes e esfregonas e aspiradores. Não. Só pequenos cantos, arestas, reentrâncias que vão ficando para trás nas limpezas rápidas, como se por um acaso os segundos que iríamos perder com esses detalhes, naquele momento,  fossem relevantes na rapidez dos nossos dias e nos fizessem falta para outra minudência qualquer.
O telefonema foi rápido, "Beijinhos Adriana! Estou atrasada, até logo!"
A páginas tantas, fiquei sentada na beira da cama, o telemovel carregava precisamente junto à janela, sobre a mesa de cabeceira, recordando o brilho dos seus olhos, enquanto contemplava a minha moldura favorita coberta de plátanos verdes.
Algures entre o norte e o sol nascente, existem esses lugares sem pontos cardeais. onde estamos situados, de vez em quando,  virados  para lado nenhum,  e como cada maluco tem as suas manias, já sabemos, crescia-me a vontade de trocar estes dias por uma coisa diferente.
_Vê lá o que fui sonhar, estávamos na praia, uma pequena baía paradisíaca, como há tantas por aí,
O mar era como são todos os mares, um manto estranhamente belo e perigoso, só que não brilhava, e apresentava-se quase como um grande lago, inofensivo e calmo, mas, logo que metíamos os pés na água  que espraiava na areia suavemente, ela puxava-nos para dentro, como se um gigante aquático nos agarrasse vigorosamente pelos tornozelos e,
com as suas mãos enormes, camuflado pela opacidade da água, para nos fazer submergir.
 a superfície daquele grande mar sem fim, era verde ou azul, não sugiro nenhuma das duas cores, mão hábil, essa que a misturou em partes exatamente iguais.
 Dizia-lhe, um pouco atordoada com a sua insistência._vou lá agora escrever sobre estes tempos de espera, monótonos e de certa forma apaziguadores, os tempos em que somos todos fragilmente os mesmos, seguindo todos as mesmas regras, onde é que isso já se viu! Todos a respirar ao mesmo tempo! Esse tempo nem existe, verás um dia destes.
Aula de ginástica começou:
 Um, dois, um, dois, e a manhã a passar tão rápida e tão incompreensível quanto o habitual.
O volume das camisolas de lã estava diretamente relacionado com a construção de frases com palavrões, daquelas que se desenvolvem desmesuradamente,
Pegam-me pela mão e acompanham-me, muito simpaticamente, até ao final do papel.
Alguns, transportam-nos para os limites dos seus mundos helicoidais e voláteis, verdadeiros ciclones no meio da tempestade.
Tornados e turbilhões tão intensos que nos puxam pelo medo e pela curiosidade, acompanhando-nos toda a viagem, até ao fundo, entrelaçados connosco,


tanto quanto é forte a relação de amor, ódio que tenho com o silêncio.
Nenhuma palavra será escolhida ao acaso, ou, as que se me revelarem as mais belas.
Escondia-me debaixo das luzes intensas da pista de dança, vestida de bailarina louca e feliz.
Aquela importância que dava à necessidade de entender o fundamento das ordens, antes de ser obrigada a cumpri-las.



E então, numa espécie de concentração involuntária e única, os olhos mudavam-lhe de maré, para, no final, endireitar tudo, a minha Lídia.

Debaixo das sobrancelhas, mesmo ali sobre os cantos, as rugas, tornavam-lhe o sorriso encantador e mesmo com as bocas  tapadas pelas máscaras,

e nas têmporas, duas linhas quase invisíveis vincavam sobre os cantos das sobrancelhas. Muito bom, ferramenta fundamental para percebermos quem, por detrás da máscara, permanece a sorrir.

Muito obrigada pelo seu trabalho, incansável e eficaz, e, não esquecendo a sua dedicação extrema.
Não gosto de medir o mundo por mim.
Naquela casa abandonada, entra, sempre à mesma hora, todos os dias, ouço ranger o portão enferrujado, e vou espreitar por entre as cortinas. Veste-se de cores garridas que me provoca, não sei por que fenómeno incompreensível, a vontade de  pintar o mundo inteiro daquelas cores. Depois atira o portão com tal violência e rudeza, que o metal fica a ressoar durante algum tempo e faz-me abandonar a vontade de colorir.
Ela insiste........................._Lembras-te de quando fizemos uma curta viagem ao tempo dos morangos?_Sempre foi assim, persistente e encantadora.
"Não é tarefa fácil ajudar as pessoas a morrer, ou a suportar os atrozes sofrimentos da dor, por exemplo. lidando com a morte antes de ela se revelar para toda a gente.
Nem agora nem sempre." Frases soltas no meio das páginas. Incompreensível, na verdade.

O esgotamento nos provocam os serviços a abarrotar de gente, a nossa atenção também virada para os que pouco estão doentes, mas resolveram ir ali, e exigindo respostas rápidas, tão rápidas quanto as de quem está urgentemente a precisar delas.
Rimo-nos como loucas, sentadas à mesa da cozinha, num dia em que chovia tanto lá fora que os passeios encharcados mais pareciam pistas de dança

Gastei uma página inteira para tentar descrever a beleza das flores e nem por isso consegui.
Não havia imposição de limites possível para o seu espírito livre,  ou louco, não sei, insistia que um tufo de margaridas não deixava de a importunar um pouco por todos os lugares, pedindo-lhe visibilidade e espaço na história, e que, e foi tão insistente que ela acabou por ceder.
Não se arrependeu. Todos os cenários se alegravam desde que não caísse a noite.
 Não me sai da cabeça o passeio salpicado de pequeninas flores
Flores, flores, flores! Para ela tudo tinha flores, era uma vida inteira cheia de um disparate de flores,
Recordações com dois mil anos? Siga para bingo, respondia-me com o seu positivismo habitual.

Aula de ginástica: Um, dois, um, dois, e a manhã a passar rápida e tão agradável quanto o habitual.
O volume das camisolas de lã estava diretamente relacionado com a construção de frases, porque estas se desenvolviam desmesuradamente, até formarem tornados que nos transportam para os limites dos seus mundos helicoidais e voláteis. Ciclones na tempestade.
Pegam-me pela mão e acompanham-me, muito simpaticamente, até ao final do papel.
Alguns, transportam-nos para os limites dos seus mundos helicoidais e voláteis, verdadeiros ciclones no meio da tempestade.

_E daquela vez, Lídia, daquela vez em que a tia Lina que se encheu de amores pela velha secretária, passava o dia a limpá-la com óleos e panos.
Até tropeçar no tapete e bater com a cabeça numa das suas esquinas.
O tio  Alfredo explicando, incansável, como, a módicos preços, fazia a sua coleção de viagens longínquas e arrebatadoras. O Pedro e o João debatendo ideais inesgotáveis entre os golos de café e as trincadelas no bolo de nozes.
Para a Lídia, cada frase tinha a sua medida e o seu peso, por muito leve que fosse a normalidade do convívio dos jantares de Natal, ela ia lá repescá-las, naquela selva imensa de conversas de família.
O meu filho veio visitar-me e eu disse-lhe, claro, a "Lídia está cá outra vez!",
e ele  carregou o semblante, assumindo um ar preocupado.
Atira o portão com tal violência que o metal fica a ressoar durante algum tempo.
Tal e qual como o gato, que afia as unhas sempre na mesma perna da mesa. O gato, pois... Quando quer sair da sala, senta-se em frente à porta fechada, uma esfinge silenciosa e até a sua presença e a sua vontade se tornarem tão fortes, que eu me levanto para o deixar sair.
Nesse dia, estava em baixo, segurava a cabeça com a mão direita aberta em quatro dedos pressionando a testa e o polegar uma das têmporas.

Éramos tão jovens, e os nossos corpos envolviam-se de tal forma um no outro, que julgámos amar-nos incondicionalmente. Para mim, era a sublime descoberta de um desconhecido que, incompreensivelmente, parece querer-nos bem.
Aproveitámos uma nesga de sol para ir dar um passeio, ah! Não podemos, pois é, talvez também não possamos esperar pelos desígnios do que tem de ser.

Às vezes, a raiva crescia-me duma forma violenta, o ódio, esse sentimento perverso e inadmissível, aflorava-me o pensamento e fazia-me bem.
Deus ia morrendo nos meus braços, velho e imprestável, matando inocentes, castigando aleatoriamente, pedindo-me contas, carregado da maior frieza, de todos os milhares de vezes que me debrucei sobre as macas distribuindo palavras de amor, gestos de conforto absolutamente desnecessários para ganhar ao fim do mês o meu ordenado sempre igual.


















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