domingo, 5 de maio de 2019

Quase #Ultra-sons

Espero ansiosamente pela noite para fazer este trajeto.
Rezo aos deuses para que a meteorologia ajude ao gosto dos outros ficarem em casa, e as ruas estejam desertas para eu sair.
Como habitualmente, passo, apressada, esperando escapar à próxima batelada de água,  não querendo perder muito tempo neste percurso desconfortável.
Preciso chegar rapidamente ao lado de lá.
Pela infinitésima vez contorno o pé da trepadeira que vive preso a um canteiro raso ao chão, desvio-me um pouco do sinal de trânsito e do banco de jardim aprisionado no passeio largo, e demasiado próximo das minhas pernas nuas, para evitar as nódoas negras, e também não quero pisar o charco que cobre todo o passeio estendendo-se até à outra margem da estrada e formando um lago.
O lago brilha moderadamente sob a claridade amarelada de um candeeiro.
Atravesso o recinto deserto e mal iluminado o mais depressa que posso.
Sombras anónimas espreitam por trás das cortinas das janelas dos andares mais baixos.
Os astros impenetráveis tomam conta do ambiente, espreitando pelos espaços livres, e daqui já se vêem fracamente as buganvílias que existem no caminho do fundo, mas, depois delas, esse caminho mergulha numa lúgubre escuridão.
Aquelas plantas cresceram livremente, após terem alcançado o topo da cerca, e agora debruçam-se sobre as escadas com os seus braços roxos e pesados pendendo sobre quem passa e tornando quase invisível o luar.
Ouço-lhes a agitação das folhas, que crepitam, movidas pela brisa forte que brevemente se transformará em rajadas de vento.
Passando os limites da cidade, ainda tenho que subir, devagar, até ao topo, onde me sentarei até nascer o dia, observando as montanhas cruas ameaçando a cidade, e só de lá saírei quando já houver tanta gente nas ruas que o chiar das minhas botas de borracha passará a inaudível.
O vale nascerá sobre o nevoeiro e só mais tarde se verão as pontas dos arranha-céus competindo em altura com a cordilheira.
Quando o amanhecer é luminoso, o que raramente acontece, melhor se observam as árvores  em frente às portas dos edifícios, ridículas por causa do seu ínfimo tamanho.
É quando os pássaros sobrevoavam a cidade, à procura de galhos para os ninhos.
Entram no labirinto, onde têm as suas casas montadas, nos últimos andares, junto às caleiras que lhes falam quando a água  resvala pelos tubos.
Todos os pássaros, menos a ave noturna  que grita. Aproveita a penumbra para encher de tal forma a atmosfera com o seu piar inconfundível, que nem entendo de onde provém o som, e por isso tudo grita assustadoramente, com aquelas notas agudas e agressivas a preencherem o vazio da sua solidão.



Sem comentários:

Enviar um comentário