quinta-feira, 16 de julho de 2020

O Pântano, Parte Um (ou, um #regimento de ideas a prosseguir)

Esta madrugada, no lento amanhecer da insónia, recordei, mais uma vez, os primeiros e felizes tempos em que vivi neste maldito lugarejo.
A agência tinha-me mostrado uma vivenda térrea com um ar muito simpático, nem muito pequena, nem muito grande, e com um jardim, também de tamanho ideal, para que pudesse cuidá-lo sem perder todo o meu precioso tempo  com a sua manutenção.
Em suma, reunia as condições necessárias, para além de que se me revelava de pormenores encantadores que pacificavam o espaço, dou como exemplos uma ou outra árvore de fruto, fortes e saudáveis, buganvílias já em idade adulta, o suficiente para se encherem de flores na altura certa,  e que  imaginava pendendo das paredes exteriores do meu futuro refúgio, e, finalmente, o portão escuro que compunha o conjunto, quase me lembrando o toque de uma joía verde  pendurada no pescoço elegante de uma jovem.
A belíssima zona arborizada, escondia, enchendo-as de privacidade, as dez ou doze casas que consegui vislumbrar nas primeiras visitas que aí fiz, impedindo os olhares indiscretos, por um lado, e por outro formando quase uma pequena ilha verdejante em que os seus habitantes podem, se quiserem,  perder-se do resto do mundo, permissas às quais não podia, de forma alguma, manter-me indiferente.
Com tudo isto, acabei por fechar o negócio e, portanto, numa bela manhã de julho, mudei-me, carregando comigo os meus imensos tarecos e tratando, quando me instalei, de estabelecer prioridades para a arrumação daquilo tudo, optando por cuidar, em primeiro lugar, do jardim, enquanto simultaneamente fui montando estantes pelo interior da casa para espalhar a minha coleção de livros que tão calorosamente prenchem certos espaços em branco.
A tranquilidade durou pouco, e eu, que jamais, durante toda a minha vida deixei de dormir umas boas horas de sono, vejo-me, noite após noite, sentada nalguma cadeira de canto, bem acordada, e de portas bem trancadas, atenta ao que eventualmente possa acontecer no exterior.
Nos meus primeiros passeios pedestres pelas redondezas, verifiquei que pouca gente se mantinha na rua, e aqueles que circulavam era de poucas palavras, rudes talvez, nem se dignavam a responder ao cumprimento que lhes fazia amavelmente, desejando-lhes ou bom dia, ou boa tarde, já que a partir do ocaso não encontrei nunca alma viva.
Hesitei antes de me decidir a atravessar o círculo espesso de pinheiros mansos e velhos que pareciam circundar aquela zona. Já estava a ficar tarde e eu não sou grande amiga da noite, O escuro incomoda-me e, mesmo quando a lua cheia interceta alguma luz e os meus olhos conseguem perceber algumas cores, mesmo assim, tudo me parece falso e lúgubre.
Mas o medo nunca impediu que intersetasse a escuridão, ao contrário, provoca em mim, bastas vezes, a força catalizadora necessária para tentar entender outros universos,ou, eventualmente, resolver alguns assuntos pendentes com as sombras, por isso resolvi atravessar aquela cintura de árvores soturnas e antigas.
A bem dizer, não consigo ter qualquer lembrança de quando o dia se transformou em noite, um pormenor que pecebemos intuitivamente quando nos encontramos ao ar livre, talvez o sol tenha desaparecido progressivamente enquanto atravessei o pequeno bosque, cujas árvores tapavam quase por completo o céu, o que é certo é que, quando alcancei o outro lado, só vestígios de luz se percebiam no terreno que se revelou à minha frente de pequenas ondas ondulando na direção dos meus pés. Nem era, talvez um movimento ondulante, talvez um espalhar viscoso, que quase me atingia e que me deixou petrificada, esperando que me alcançasse sem conseguir ter reação. No momento em que nos tocámos, eu e aquele gigante aquático que me impulsionava para o seu fundo desconhecido, imediatamente me agarrou pelos tornozelos e me fez cair, com as suas mãos de gigante dos pântanos, e eu submergi até quase perder os sentidos,
Imagens do jardim destruído, o meu jardim de flores, que tinha por causa de uma curiosidade que não se deve ter, ir para além das nossas fronteiras floridas, passavam-me pela cabeça, flaches de flores mortas, frutos putrefactos caídos no chão, trepadeiras subindo os seus fracos braços descarnados pelas paredes sem força nenhuma, como se atacados de uma doença mortal.
Algo me fez voltar à realidade, talvez o instinto de sobrevivência que nos é característico, a verdade é que não cheguei a desmaiar, antes acordei ao invés de adormecer e usei todas as forças que tinha para me libertar. mas consegui, e arrastei-me, como se pesasse toneladas, para fora daquele pesadelo.
Desde esse dia que me sento  no degrau mais alto dos quatro degraus da pequena escada, debaixo do alpendre, olhando, conformada o jardim entristecendo com o que se enrola, alietoriamente ,por aí, invasor e ofuscante, que crava as raízes em qualquer superfície por onde passe. Ouvem-se os ruídos  do material a ceder, as madeiras estalam, as paredes racham à sua passagem, ouve-se tudo, num barulho que ecoa  insuportável. e o portão nem se vislumbra, de tal forma está enrodilhado folhas prateadas, mas hoje não. Não tive coragem para sair de casa, não me atrevi, nem para os degraus ao pé da porta, que já vão sendo invadidos por pequenas hastes encaracoladas e subtis.
Avançam vagarosamente, preenchendo todas as superfícies, e eu, já nem vou sair daqui.



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