quarta-feira, 22 de julho de 2020

O Pântano (finalizado)

  Esta madrugada, no lento amanhecer da insónia, recordei, mais uma vez, os primeiros e felizes tempos em que vivi neste maldito lugarejo.
  A agência tinha-me mostrado uma vivenda térrea, nem muito pequena, nem muito grande, e com um jardim, também de tamanho ideal para que pudesse cuidá-lo sem perder todo o meu precioso tempo com a sua manutenção.
  Em suma, reunia as condições necessárias, para além de que se me revelava com pormenores encantadores que pacificavam o espaço, dou como exemplos algumas árvores de fruto, fortes e saudáveis, buganvílias já em idade adulta, a suficiente para se encherem de flores na altura certa, e que imaginava pendendo das paredes exteriores do meu futuro refúgio, e, finalmente, o último toque de graciosidade que compunha o conjunto, o portão escuro que quase me fazia lembrar o requinte de uma esmeralda pendurada no pescoço elegante de uma jovem mulher.
  A belíssima zona arborizada escondia,  enchendo-as de privacidade, as doze casas que consegui vislumbrar nas primeiras visitas que aqui fiz, servindo para impedir os olhares indiscretos, por um lado, e por outro formando quase uma pequena ilha verdejante em que os seus habitantes poderiam, se quisessem, perder-se do resto do mundo, dois belos pormenores que não me deixaram indiferente.
  Com tudo isto, acabei por fechar o negócio e, portanto, numa luminosa manhã de julho, mudei-me, carregando comigo os meus imensos tarecos e tratando, quando me instalei, de estabelecer proridades para a arrumação daquilo tudo. optando por cuidar, em primeiro lugar, de me ocupar do jardim e depois da arrumação da minha coleção de livros pela casa, para que, calorosamente,  ocupassem alguns espaços vitais.
Essa tranquilidade durou apenas uns meses e voando as estações do ano  supersonicamente, atropelando-se umas às outras, como é habitual, quando dei por mim, já não havia verde misterioso no parque, ou no meu jardim. apenas as cores sépia se manifestavam, como se o outono se tivesse instalado repentinamente.
Mas como dizia, a tranquilidade durou pouco, e eu, que jamais durante toda a minha vida, deixei de dormir umas boas horas de sono, vejo-me agora, noite após noite, sentada numa cadeira num canto, bem acordada, atenta ao que eventualmente possa acontecer lá fora, no exterior. destas paredes.
Nos meus primeiro passeios pedestres pelas redondezas, verifiquei que pouca gente se mantinha na rua e aqueles que circulavam eram de poucas palavras, rudes, talvez, nem se dignavam a responder ao cumprimento que lhes fazia amavelmente, desejando-lhes bom dia, ou boa tarde, já que a partir do ocaso não encontrei nunca alma viva.
Hesitei antes de me decidir a penetrar o círculo espesso de pinheiros mansos e velhos que pareciam circundar aquela zona. Já estava a ficar tarde e eu não sou grande amiga da noite, o escuro incomoda-me e, mesmo quando a lua cheia me fornece alguma luz e os meus olhos conseguem perceber algumas cores, mesmo assim, tudo me parece falso e lúgubre.
Mas o medo nunca me impediu de intersetar a escuridão, ao contrário, provoca em mim, bastas vezes, a força catalizadora necessária para tentar entender outros universos, ou, eventualmente, resolver alguns assuntos pendentes com as sombras, por isso resolvi atravessar aquela cintura de árvores soturnas e antigas.
A bem dizer, não consigo ter qualquer lembrança de quando o dia se transformou em noite, um fenómeno que percebemos intuitivamente quando nos encontramos ao ar livre, talvez o sol tenha desaparecido progressivamente enquanto passei pelo pequeno bosque, cujas árvores tapavam quase por completo o céu, o que é certo é que, quando alcancei o outro lado, nem vestígios de luz havia no terreno pantanoso que ondulava à minha frente, na direção dos meus pés.
Talvez não ondulasse, antes se espalhasse, viscoso, e que me fez petrificar, esperando que me alcançasse sem conseguir ter a mínima reação.
No momento em que nos tocámos, eu e o gigante aquático que se escondia na turvação, puxando-me para um fundo desconhecido e aterrorizador, agarrando-me pelos tornozelos com as suas mãos de gigante dos pântanos, acabei por me desiquilibrar e cair.
Submergi, até quase perder os sentidos.
Durante um período de tempo que me pareceu uma eternidade, imagens do jardim destruído, o meu jardim de flores, passavam-me pela cabeça, via os frutos putrefactos caídos no chão, as trepadeiras de braços descarnados e fracos subindo pelas paredes, sem vitalidade, como se atacadas por uma doença mortal, ao mesmo tempo que uma sensação de culpa me causava uma enorme angústia, a culpa de querer ir para além das minhas fronteiras floridas, uma curiosidade que nunca se deve ter.
Algo me fez voltar à realidade, talvez o instinto de sobrevivência que nos é caraterístico, o que é facto é que consegui, com uma força inesperada, libertar-me daquele horror e fugir.
Arrastei-me como se pesasse toneladas, para fora daquele pesadelo.
Não sei que sementes possa ter trazido agarradas à roupa enlameada, ou se, quando da minha fuga, algo se movia atrás de mim aproveitando o ritmo dos meus movimentos, apenas sei que, desde esse dia que me sento no primeiro degrau dos quatro da pequena escada, debaixo do alpendre, observando, conformada, o jardim entristecendo com esta maldita praga que se enrola, alietoriamente, por todas as superfícies, invasora e negra, cravando as suas raízes por todo o lado.
Ouço os ruídos dos materiais que cedem, as madeiras estalam, as paredes racham à sua passagem, ecoando em barulhos insuportáveis.
O belo portão está já completamente coberto, e hoje, hoje nem tive coragem para sair de casa, porque até os degraus onde me tenho sentado vão sendo comidos por longas hastes, filamentosas e ameaçadoras.
Avançam, vagarosamente, preenchendo tudo, e eu já não vou mais sair daqui.

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