segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

O jantar do departamento

Quando cheguei, mulheres de cabelo fino e mãos grossas desfilavam pelo mosaico brilhante. Nas unhas pintadas, arranjadas na cabeleireira, espelhava-se o seu modo de vida irrepreensível, o bom casamento endinheirado e feliz, o amor dos filhos e do marido. Aquele núcleo exemplar, o cabelo louro de alguns benjamins, um fator diferenciador nestas terras de gente escura, de olhos e pele bronzeados do sol quente.
Talvez para mim o mais incómodo fossem as opiniões soltas. Tinha acabado de falar com alguém de uma enorme intransigência em relação aos outros. Comentava que os hospitais não deviam receber toxicodependentes, ou outros que tivessem decidido por si pôr em risco uma existência saudável, como se pudéssemos mandar para casa todos os irresponsáveis. Talvez o enfermeiro da triagem perguntasse: "o senhor comeu demais? Então se a culpa é sua, vá vomitar para casa!" ou "se fuma não temos nada que tratar a sua infeção respiratória, ou atentou contra a vida,foi pena não ter morrido", separando os fracos e mal comportados dos fortes e direitos, um mundo irrepreensível composto por homens e mulheres de atitude exemplar.
Encostada a uma mesa, a colega x discursava a sua intransigência em relação aos milhões que fogem da guerra." Eles que fiquem e lutem"! Não pude deixar de a imaginar de metralhadora às costas, com um chapéu a condizer comprado por uma bagatela, e a queixar-se do incómodo das varizes, ou dos dias penosos do período, como sempre a vejo fazer.
O mosaico brilhante espelhava então tranquilidade, ouvia-se o burburinho das conversas, a mulher do cabelo comprido e do vestido bonito conversava. Dizia não perceber as donas de casa que passavam todas as peças de roupa a ferro. Ela, no que se revelava ser mais prático e mais económico, dobrava atoalhados e lençóis, e depois, eventualmente,dava-lhes apenas um cheirinho de alisamento. Que grande parvoíce!
Concordei. Sim senhora, que estupidez, e embora estes eventos sejam organizados para concordarmos uns com os outros, confesso que não me foi difícil. Foi tão expressivo o discurso, e teve tanto ênfase, que me pareceu efectivamente serem estas senhoras dos grupos mais cretinos do mundo.
As paredes decoradas davam eco ao barulho de fundo das conversas.
"Estão a gostar? Tudo a correr bem"? Tinha-se aproximado a diretora. Tudo Doutora,muito Doutora, muito bom jantar. Todos sorriram, claro! A diretora afastou-se, o rabo vagaroso debaixo do carrapito.
Quanto a uma das mães de filho louro, continuava a conversar. Agradável. Quando se entusiasmava um pouco a voz esganiçava-se-lhe num timbre desagradável, pormenor que não pude deixar de associar às mãos grossas, disfarçadas pelas unhas arranjadas irrepreensivelmente, que espelhavam o mosaico brilhante, o mosaico a esta hora já com alguns pedaços de comida, ou pingos de bebidas espirituosas a colar aos sapatos.
Havia umas botas verde alface que foram o calçado mais falado do serão,e a meio do acontecimento colocou-se-me uma questão: Porque não fiquei eu em casa a comer a grotesca bifana que deixei temperada.
Já o mosaico brilhante tinha ataques de riso, o rosê farfalhudos a fazer das suas, de mistura como espumante meio caro meio barato, guardanapos já lixo, maquilhagens intactas, outras menos eficazes iam destapando as rugas, e as mãos grossas de unhas impecáveis, cubos de gelinho perfeito, ou lá como se chama aquele horror que engorda as unhas.
A voz esganiçada, os filhos nas melhores escolas, e os melhores maridos que de alguma forma também lá estavam, eu pelo menos, pude imaginá-los sentados nos carros,ou de óculos escuros encostados às motas, alguns ao telemóvel.
As mais velhas e menos encantadoras senhoras tinham pelo menos os filhos bem sucedidos, engenheiros e doutores, de gavetas imaculadas.
"Então, gostou"? Perguntou-me a diretora à despedida.
" Mais ou menos Doutora, a comida estava uma valente merda"!

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