sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Só os pássaros espreitavam com algum interesse para dentro dos vidros das janelas de casas sem dono.
Na quietude moviam-se dois insetos, um que esvoaçava entre a poeira e outro que tamborilava as suas oito ínfimas patas pelo chão, junto ao rodapé.
O gato em qualquer ponto galgava a cerca, atravessava  as pedras sujas do caminho e, na penumbra, semicerrava os olhos.
Os pássaros pousavam no parapeito, ou planavam batendo as asas em cadência, o número de vezes suficiente para lhes aguentar o peso do corpo que parecia ficar suspenso no ar, ou simplesmente passavam, e de passagem olhavam com interesse lá  para dentro da casa sem dono.
As trepadeiras enroscavam-se, agarravam-se às saliências, os arbustos por podar tapavam grande parte das paredes externas, a casa sem dono era engolida pela vegetação, as portas eram maltratadas pelo vento repetido vezes sem conta. 

sábado, 3 de dezembro de 2022

Aquelas eram assim, tão bonitas que constantemente procuro palavras adequadas para  descrever o que elas eram, 
busco, porventura, o que não  existe, ou não me é acessivel.
Mas agora estão irremediavelmente mortas, alguém, sem coração,  lhes cortou o tronco.
Eu fiz o que podia. 
Fotografei-as de todas as formas, todos os ângulos onde consegui chegar com os olhos postos, por vezes, nos milhões de estrelas que formavam de noite,
quando as luzes dos candeeiros as trespassavam
até os raios de luz serem apenas golpes curtos, 
segmentos de retas interrompidos pelas folhas que cantavam em sussurro ao ouvido do vento. 
Cintilações do universo na copa de uma árvore, seria isso mesmo, ou não? 
Viveram longos anos, mas será breve a sua memória a morrer, eram as nossas estrelas guardiãs e ninguém dava por isso.
Na alameda, ainda lá se encontram, e que bonitas que estão, com os seus troncos escuros, da cor do carvão.
Estancavam, abruptamente, as luzes, nos intervalos das folhas, de quando em quando as últimas que a brisa levava e espalhava pelo chão.
Eu parava lá debaixo para pensar, porque cresceriam, imóveis e silenciosas, sem revolta?
Cobriam o recinto, eram tão lindas que...
Nem se viam na noite escura, era só para apreciarmos as estrelas pequenas, ao alcance das nossas mãos.
Eu fiz o que pude, absorvendo ao máximo o que elas me davam, retive-as comigo, usei e abusei da sua generosidade imperturbável, falei-lhes de amor sem sequer abrir a boca, só com os olhos lhes dizia tudo e elas entendiam-me melhor do que ninguém...

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Só de olhar para a mulher uns segundos, percebeu que ela estava nervosa.
Mal abriu a porta de casa, deparou com ela com aqueles tiques que sempre lhe apareciam, involuntariamente, quando alguma coisa a preocupava. Levantava muito os ombros, fungava ruidosamente e batia com as mãos, ora nas têmporas, quatro vezes seguidas, ora nas ancas, três vezes, e seguia esta sequência até se acalmar um pouco.
Como sempre fazia, foi buscar um copo de água onde adicionou um pó calmante, constituído por flores de camomila e hortelã dos estábulos.
_O que tens, mulher, vejo que alguma coisa te incomoda. Toma. Bebe isto que te fará bem._
_Ai... Tu nem sabes... Pareceu-me ver um #frade debaixo do aparador da cozinha._ 
Maria da Ressuscitação, que, ao momento, se deixava relaxar um pouco, a hortelã dos estábulos tem esse efeito imediato de descompressão nervosa, pareceu ficar possuída outra vez. O medo alterava-lhe as feições, dava-lhe traços aparentados de lobisomem.
De facto, se se confirmasse a presença de frades dentro de casa, o problema era grave, até para Astúcio dos Santos, um homem corajoso e forte, que já  tinha combatido com extrema valentia em três guerras devastadoras, tinha trabalhado nas minas de S. Zinho, as mais perigosas do mundo, toda a sua vida era um exemplo de audácia e bravura.
Ainda nem fazia um ano, Astúcio dos Santos tinha feito uma "limpeza" pelos pinhais em redor, destruído todos os covis onde eles se escondiam, durante duas semanas limpou o terreno, vasculhou a casa toda, nem um ovo de frade encontrou, pensou, licitamente, ter-se livrado da praga.
Os frades, talvez seja bom explicar, são agressivos e feios. Evidentemente que a fealdade não deve ser condição para que coloquemos nenhuma criatura de Deus à parte, mas, porra, estes seres eram mesmo horrorosos e há limites para tudo nesta vida.
Independentemente disso, os frades, quando se alojavam em casa de alguém, roubavam comandos de televisão, comiam as comidas que estavam no frigorífico, roíam as pernas dos móveis e puxavam os fracos cabelos aos mais idosos das famílias.
Quando se cansavam de determinado lugar destruiam o que podiam antes de partir. Pior que tudo isto era a obrigatoriedade de ter durante a sua permanência, uma pessoa que se dispusesse a ser oferecida como sacrifício aos deuses deles, e nem sempre alguém  se disponibilizava, o que gerava grandes controvérsias e até conflitos que nem o melhor curso  de inteligência emocional conseguia ajudar a resolver.
Dito isto, pode entender-se, talvez, a aflição  de Ressuscitação e Astúcio ao verificarem ter voltado a praga, mais uma vez.
Mas o casal, habituado aos contratempos de uma vida de dificuldades, não se deu por vencido. Santos, pé ante pé, dirigiu-se à dispensa e de lá tirou um objeto, que Ressuscitação não conseguiu identificar, "Ha... Se eu fosse a minha irmã Maria do Raio X... Ela ia perceber logo o que foi este homem buscar à despensa", e continuou a seguir os movimentos do marido para tentar perceber que ideia lhe viera à cabeça.
Astúcio dos Santos dirigiu-se ao móvel onde a mulher disse ter avistado a criatura. Baixou-se, com muito cuidado para não  fazer barulho e lá estava ele, a dormir ferrado, com a dentadura do avô Rui Nôso presa numa das garras.
O mais silenciosamente que lhe foi possível, Astúcio agitou vigorosamente a embalagem que trazia consigo e vaporizou o frade bem no meio daquela cara horrenda, entre o focinho e a tromba. O animal contorceu-se muito, e quanto mais ele se contorcia mais Astúcio dos Santos o pulverizava, até ele estar com as patas viradas para cima, e largar a dentadura que tinha custado muito dinheiro, bastante acima das possibilidades desta gente necessitada.
Ressuscitação sentiu-se muito aliviada e contente, e como sempre fazia quando se sentia assim, fez três piruetas e dois mortais encarpados, repetidos por esta ordem até quase esgotar a sensação de felicidade.



domingo, 27 de novembro de 2022

Porque choram as flores de cera,
ou a chuva por elas?
Tinha as pupilas tão perto quanto bastasse para ver
as imagem invertidas no fundo de qualquer gota,
nítidas, e revelando tudo ao contrário,
contendo ruas inteiras, ou outras paisagens,
um mundo superficial que desapareceria
impiedosamente,
com a aproximação e posterior permanência  do sol, 
em abertas de tempo incerto 
naquele acontecimento vulgar que era mais um outono. 
Estendia as mãos o mais possível, e, 
em bicos de pés tentava agarrar as folhas
que caíam das árvores, enquanto recordava
meia dúzia de memórias inventadas.
Subia o banco de pedra para tentar engrandecer
um pouco o seu pouco tamanho,
saltava de novo para o chão  
e para a  consciência das ervas crescendo à beira do passeio,  
no seguimento duma escassa linha de terra que o acompanhava.
Rasavam-lhe os ombros, tão altas, tão altas... 
até onde  um menino pequeno pode entender.
(Alguém lhe abria a porta para a escada monumental 
e lá dentro  os velhos armários estalavam misteriosamente, 
e assim vivia as coisas).
Os seus olhos de criança procuravam 
constantemente todas as distrações.
Enfiou os pés calçados com botas de cano curto 
dentro de um charco, a mãe, o pai, 
não viram o propósito da ação, 
desconsideraram o gesto,  
pensando tratar-se de aluamento, ou discuido, 
o  miúdo escondido no seu ínfimo tamanho, vivendo à superfície da lua.
Era-lhes difícil imaginar, por isso, 
a importância do ruído que provoca o chapinhar na água, 
ou talvez nem o tenham ouvido, sequer.




terça-feira, 22 de novembro de 2022

Revelações

A conversa era sempre a mesma, 
Então hoje onde é que estás, tia Lurdes? 
Hoje estou em Paris. 
E o que vês? 
Vejo os porquinhos e as galinhas lá mais ao fundo. E oliveiras.
De forma que, confesso, hesitei em atender, já íamos no décimo telefonema de cidades supostamente diferentes, mas acabei por aceitar a chamada.
Por aqueles dias,  admito que já nem perguntava pelo estado da sua saúde, nem como passara desde o último telefonema, nem procurava falar uns minutos de qualquer trivialidade, das muitas que nos preenchem o quotidiano. Desde que me apercebi que o que queria era relatar os seus devaneios, ia direta ao assunto que mais a confortava, para a deixar feliz.
Então hoje onde estás, tia Lurdes? 
Hoje estou Antuérpia.
E o que vês, tia? O que tens visitado por aí? 
Vejo os porquinhos e as galinhas lá mais ao fundo. E oliveiras.
Após um razoável período de telefonemas mais ou menos regulares, resolvi contactar com a minha prima Arlete, sua filha mais velha e a mais cuidadosa  dos três irmãos, diretamente para o seu telefone, porque a insistência da minha tia em inventar cidades à sua volta percebendo eu, racionalmente, que devia estar sentada numa cadeirinha na quinta de onde nunca tinha saído, começava a preocupar-me.
Arlete atendeu. 
Olá, Arlete, como estás? 
Estou bem, obrigada. Estou em #Zagrebe. 
A  resposta ao cumprimento que lhe fiz, deixou-me em total estado de alerta. Tu queres ver que por algum motivo inexplicável, estão as duas com os mesmos sinais?
Então e o que vês, Arlete? 
Vejo a mula a comer a palha que o Santiago lhe deu. E oliveiras.
Senti-me aliviada. Afinal não  respondiam da mesma forma ao que eu lhes perguntava. Havia alguma semelhanças entre os discursos, mas isso devia-se ao facto de habitarem juntas, sempre criamos certos costumes iguais aos das pessoas que, na vida, partilham connosco os espaços.
Tive que desligar rapidamente porque tinha outra chamada em linha. 
Era o meu filho. 
Olá, mãe. Onde estás? 
Estou em Tóquio e estou muito ocupada, meu filho. Ando na apanha da azeitona. Até logo.









domingo, 6 de novembro de 2022

Um Passeio Por Lisboa

Ao continuar,
julguei ver aquela velhinha a fazer contas ao tempo consumido, mas se calhar foi apenas uma impressão.
Dei por ela porque havia exposto sobre o banco do jardim as pantufas que acabara de tecer. Estava de pé, mas tinha um joelho encostado ao acento de madeira, talvez para se apoiar, ou para equilibrar melhor o corpo débil.
Com as mãos manuseava as agulhas e delas escorriam para um saco de plástico fios amarelos e laranja, as mesmas cores que se viam no trabalho já terminado e colocado sobre as ripas, mas, confesso, não gostei daquela mistura de tons tão descaradamente feia, que chamou a minha atenção, desconcentrando-me os  pensamentos e a não contribuir em nada para atenuar a preocupação que  me vinha perseguindo fazia uns tempos.
Perguntei-me porque estaria a mulher de pé.
Nem sei se por falta de talento, ou por inevitável  absorção das palavras escritas, como se me fossem imprescindiveis à vida, como a água para matar a sede, ou o oxigénio incolor que nos alimenta os pulmões, os ossos, os músculos, as mãos,  julgava imitar descaradamente as páginas do livro que me pesava nas costas, como sempre, o último autor,  dentro de uma mochila azul colada às costas, o medo real de que as minhas linhas de palavras, ou estivessem mal escolhidas como aquelas cores ou, para piorar um pouco as coisas, seguissem sem controlo algum, com um formato que não era o meu, uma espécie de usurpação inconsciente daquela voz recente, e que me vinha seguindo pela rua acima.
Receava, por isso, o próximo encontro com uma folha em branco
A cidade, afinal, nada tinha de mágica, foi o que me deu para entender ao subir e descer e subir e descer alamedas, atalhos, trilhos e veredas, antes sofria progressivos encantamentos, conforme cada estação. Era, surpreendentemente, um objeto nas minhas mãos. Tem horas qua a sua beleza é quase comovente. Pode ser ao fim de tarde, de manhã, conforme o sol esteja mais perto, ou mais longe. Basta que ele exista e incida sobre uma das colinas opostas aos meus olhos, quando reflete nos vidros das janelas lá ao fundo, ou mesmo na longínqua superfície do rio.
Após uma avenida ruidosa, deparei-me com um oásis de árvores centenárias, num canto do meu caminho silencioso.
Não é, não, não é uma cidade mágica, mas sim o objeto imaginado por ti, onde sempre alguém aparece.
Pode até ser num domigo de manhã, cinzento luminoso, ou negro noite pintalgado de luzes e guarda-chuvas.
Mas não era esse o caso, estava, de facto, um belo dia.
A velhinha deveria preparar-se para regressar a casa, onde talvez um gato a esperasse, talvez um pássaro tivesse atirado para os mosaicos quadrados as cascas das sementes que acabara de comer, talvez fosse um papagaio verde e a gaiola estivesse muito suja, não sei.
Um tacho em alumínio haveria de repousar sobre o fogão de dois bicos, com a dose indicada para o seu jantar de sopa de couves e outros legumes, calculo, mas, após decidir regressar, lembrou-se de emendar o erro que acabara de cometer, refazendo as últimas malhas, e depois, certamente, achou por bem não deixar aquela volta a meio, percebo-a muito bem, e decidiu, já de pé, acabá-la antes de meter tudo no saco para regressar a casa, e esperar pela próxima tarde de sol.
Quanto a mim, não me chegou tão bonito passeio para amenizar as incertezas, não foram suficientes os movimentos imaginados de uma mulher a fazer tricot. Mantenho o mesmo receio, as mesmas dúvidas, mas é-me impossível dizer que não escreverei #nunca-mais.





terça-feira, 25 de outubro de 2022

Fragmentos

Bem cedo,
desceu a a venida 
enquanto pensava 
na possibilidade
de encontrar 
frases escritas
na densidade 
do nevoeiro.

Houve um momento 
em que teve de parar
a marcha,
por causa do navio 
que circulava 
a alta velocidade 
pelos carris.

Sem flores, 
nada feito, 
fogem-nos as
tonalidades 
para os motivos 
tristes.

A floresta imensa,
que surgiu do nada 
neste 
conto anormal, 
murmurava 
insistentemente 
o seu nome.
Ele não queria 
entrar, 
mas...

Não tardaria muito 
e a manhã  buliçosa 
levaria a beleza 
da reflexão do outono. 

A água das poças 
perderia a transparência 
e as folhas caídas 
seriam apanhadas 
dos lagos, 
com uma rede.





terça-feira, 18 de outubro de 2022

No topo da colina, 
duas enormes árvores pareciam ter nascido 
com o propósito  de receber nos seus braços belos encontros.
Era como se representassem uma ilha em terra, 
onde a paisagem até se perder de vista espraiava em redor. 
Ali, ninguem chegava sem ser avistado 
logo muito no longe da paisagem.
Vinham de um  retângulo de cidade 
que tinham refletido no chão do quarto
onde cada um deles tinha direito
a um retângulo da cidade refletida no chão  do quarto
um dia após o outro.
Os intrusos caminhavam lentamente
pisando a palha seca e musical.
De repentemente
escurecia o céu pendente
e ocultava
aquele grande oásis de galhos 
chorando para o chão as telhas verdes.
Havia veados e veadinhos a espreitar, havia...
Era duas árvores,
tão lindas, havia, que nem a sua beleza morreu 
após uns quantos golpes certeiros de machado. 
Alguém mo bichanou ao ouvido, não sei, 
um poema murmúrio
numa festa pouco importante.
O vento fervilhava nas folhas 
e soprava nas chaminés,
com elegância. 
O vento batia nas árvores, 
a chuva escorregava pelo vidro da janela que incluía, 
na sua transparência, 
um pequeno pedaço dos grandes  
edifícios iluminados,
dos candeeiros eletrificados, 
da avenida principal.
No topo da colina havia as árvores. 
Debaixo delas havia um abrigo
que nos resguardava da chuva fraca,
até serem eram iguais a nenhum tecto, 
iguais a nada.


Todas as noites,
muito por influência 
dos candeeiros
à beira da estrada, 
um retângulo da cidade 
surgia no chão 
do meu quarto
e era lá que, 
muito bem misturada 
nas outras sombras,
estava
uma árvore enorme
que, 
num meu grosso modo
de ver as coisas,
existia com o propósito
de fazer o vento musical
fervilhar 
nas suas folhas.
E então,
chovesse, ou não, 
no soalho de madeira,
eu abria a janela
para a ouvir.







sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Alice olhava a terra impregnada de água e o cão a chafurdar metendo o focinho e as patas na lama, provocada pela repentina chuva que caíra fortemente há minutos.
Os automóveis, que de madrugada eram raros, começavam a passar agora com maior regularidade. Ouvia-os percorrer a estrada, que passava em frente à entrada de sua casa, ouviam-se nas traseiras, o ruído passava pelo caminho desimpedido entre garagem e portão. O gato, e apesar da indiferença que por vezes gostava de demonstrar, também estava presente. Vaidoso, e para se fazer notado, cabriolava no chão de pedra, entre as folhas molhadas. Aquele gato gostava muito de água, o cão também, e vai daí os três vinham para a rua sempre que davam pela chuva a começar.
Após o aguaceiro inesperado, que nem lhes deu tempo para se abrigarem debaixo de nada, como faziam habitualmente, e que coincidiu com o amanhecer, o sol abriu e espalhou luz pelas superfícies molhadas.
As asas de Alice estavam tão ensopadas que a menina não as conseguia erguer, a sua fina e translúcida espessura carregava agora um peso extraordinário, e a miúda deixou-se ficar ali parada para elas secarem um pouco até que a mãe a chamasse, para mais uma repreensão após ter cometido um dos seus  irresistíveis crimes de criança sonhadora.
O cão trouxe na boca a suja boneca desenterrada e depositou-lha no colo, afastou-se um ou dois metros e começou a sacudir o corpo energicamente para expelir a água do pelo, que se expandiu  em gotas pérola que se cravaram em todo o lado, e  Alice viu-as caírem sobre si.
A mãe chamou-a de lá de onde estava, encostada à ombreira da porta, com a cabeça repousada por uns momentos na ripa de madeira.
Ela mal conseguia regressar por causa do peso invulgar que carregava nas asas.
Cada passo era difícil, custoso, mas Alice fez o esforço possível e continuou, seguida de um cão obediente e de um gato que se esfregava no muro, fingindo-se absorto na sua vidinha, mas, em boa verdade, mais atento à situação  do que qualquer outra criatura viva que por ali estivesse a apreciar o primeiro sol da manhã.
Ao cão e ao gato não lhes foi permitido entrar.
Mas que asas, Alice? Uma toalha turca rodou suavemente pela sua cara de criança, passou-lhe pelos cabelos, onde absorveu uma grande quantidade de água, e desceu, em idênticos movimentos circulatórios agora mais enérgicos, até à camisolita branca. 
Quais asas? Sonhaste. A mãe passou-lhe a mão pelas costas e, com delicadeza, tirou-lhe o brinquedo das mãos, explicando-lhe que precisava de ser muito bem limpo.
Alice sentou-se no sofá a ver televisão. Encostou-se, com muito cuidado, à superfície florida do tecido, esperando que este absorvesse pelo menos parte do líquido que tanto lhe pesava e que quase a impedia de se mexer.
Olha para isto, Alice, tudo tão encharcado à tua volta. Nem entendo... Nem entendo...







quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Um pouco relacionado com o mesmo estado de alma que o tinha levado a passar um bom pedaço da tarde sentado em frente à janela, o poeta acomodou-se no velho cadeirão a olhar as chamas bruxuleantes do fogo.
Passava por tormentas sem a inspiração necessária, que era para ele sinónimo de tabalho, de produtividade, de dinheiro vivo que lhe pagasse a existência, cujo desenvolvimento está dependente dele, de forma que era obrigatória a produção de ideias e o seu desenvolvimento, mal estaria alguém que, ao acordar, e após os primeiros instantes de intenso desagrado por ser obrigado a ir para o emprego, não conseguisse ultrapassar esses momentos negativos para seguir o seu dia com o mínimo de boa disposição  e bem estar, para que, ao final do mês, recebesse a devida remuneração. 
Com ele não era de todo assim. O seu processo imaginativo tinha que ocorrer do nada, uma ou outra vez era catapultado por algum mestre do ofício, que lia em páginas geniais escritas por alguém que não ele, ou algum fenómeno da natureza que por acaso se lhe apresentasse de forma diferente, ou um pormenor sem importância, mas que podia, e devia, crescer à medida que o fosse trabalhando mentalmente. 
Certo é, que não  era a obrigação imposta e habitual de cumprir determinado afazer que dinamizava o seu trabalho, não. Podia apenas contar com o decorria dentro de si mesmo e, para isso, não se nos apresentam dietas, panaceias, ou outras artimanhas conhecidas, que possam despoletar, tanto a vontade, como  a obrigação de escrever.
De forma que agora, ali, perante o lume, ou mesmo durante a  tarde, quando observara quem passava na rua, sentia-se completamente indiferente perante o facto de ter assistido ao passeio que a mulher fizera com o seu cão, que cheirava o chão enquanto andava, puxando a trela para a frente, que esticava obrigando a senhora a agarrá-la com acrescida força. Afinal a criatura não passava de uma criatura qualquer e o cão era apenas um cão vulgar.
Olhava para a lareira, prevendo que as chamas diminuíssem nos próximos minutos, se, por acaso, não se levantasse para as alimentar com mais lenha, mas deixou-se ficar, de forma consciente, porque se lembrou que, talvez nas brasas incandescentes encontrasse a motivação que em vão procurava nos últimos meses, meses esses em que o computador era apenas aberto para consultas financeiras ou, eventualmente, para jogar um jogo desses de entretém.
Lá dentro estava, também, o seu livro abandonado pelo meio. 
Durante a tarde, já a mulher tinha voltado a casa com o animal, um homem de chapéu preto de abas redondas apanhara, não percebendo estar a ser observado, várias flores do jardim. As roseiras, cujas rosas vermelhas estavam no seu auge, ficou depenada, reduzida a um grande monte de caules com picos e folhas verdes. Mais uma vez, o homem, as rosas e o chapéu  invulgar, eram sómente um homem, umas flores e um chapéu, e não passaram para além.
Enquanto lembrava a tarde improdutiva que acabara de passar, mais uma entre muitas daqueles últimos tempos, ele olhava o fogo a esgotar-se a si mesmo e os troncos que estavam ao lado, secos e cascalhosos, inertes e arrumados em pirâmide.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Gerbera não sabia o seu nome.
Estava atrasada por mil anos 
na mudança dos vidros facetados das  janelas.
Havia, em todas as horas da sua curta vida, outras prioridades, 
a urgência  de resolver pequenas coisas trocava-lhe os pensamentos, 
de forma que, de todos os brilhos e luzes, de todas as cores do arco íris que se revelavam no jardim, e apesar da sua forte presença,  talvez não  fossem, então, mais do que meras falsidades. Vivia assim, com esta interrogação.
Era um facto incontestável de que tinha passado os outonos a morrer, sempre a morrer um pouco, acompanhando as rotações do sol, mesmo quando ele se escondia atrás de uma nuvem cinzenta, enorme e tão densa que ninguém apostaria que lá por trás existisse céu azul.
E era tão necessário pôr fim à encruzilhada artificial daqueles específicos raios de luz, refletidos em praticamente todo o universo, e tão assustadoramente errados. Deveriam ser paralelos e não incómodos segmentos de reta discordantes.
E o tempo passava... 
Dias rápidos, em que se erguia, orgulhosa, para a seguir cair, pesarosa,  na branca  folha das folhas, todo o tempo que leva a atingir a forma redonda do um caule, onde seriam as vãs palavras a encaminhar uma coroa de  velhas pétalas para o chão.
Era bem possível que Gerbera fosse nome de flor, por coisas que viu e foi ouvindo, que adivinhou nos passos das pessoas que passavam junto a si.


Gerbera não sabia o seu  nome, mas sempre tivera por ele muita curiosidade. Até ali, havia sempre, em todas as horas da sua curta vida, outras prioridades para resolver, de forma que a urgência das pequenas coisas trocava-lhe os pensamentos e, quando se debruçava sobre o assunto, era distraída pelas cores do arco íris, ou por qualquer outra manifestação  de vida que acontecesse no jardim.
(Os outonos, percorria-os sempre a morrer.)
E o tempo passava...
(Era no outono que eu, na minha folha branca, desenhava a forma redonda do seu caule.)
Um dia, não precisou mais de pensar. Por coisas que  fora ouvindo  palavras das pessoas que passavam junto a si, era bem possível que, afinal, Gerbera fosse nome de flor. 





sábado, 10 de setembro de 2022

#Javardice

Havia um anjo que voava eternamente sem cansaço visível e só daquele olhar puro e dos seus mantos transponíveis me lembro.
"Mãe!", chamava eu, não porque quisesse comunicar com ela. Sabia estar morta há muito, mas para que a figura enigmática e etérea que por ali rondava lhe fosse transmitir uma simples noção apenas, um sentimento sem palavras, mas necessariamente vivo, "Estou próximo, tão próximo de ti. Não vês os meus braços levantados, olha os meus olhos baços." Vai, anjo bom. Vai dar-lhe o recado.
E ele rodava sobre si mesmo, com a elegância  do que não  se vê assim tão facilmente, abria as suas asas brancas e lá ia, sem dizer nada, e eu sossegava durante algum tempo.
E foi assim, pelos dias do fim, o anjo abeirava-se das grades, eu chamava a minha mãe, um outro chamava a sua, todos o fazíamos, balbuciávamos os nossos amores incondicionais, eternos, perdíamos a dignidade, tínhamos as pernas abertas e esquálidas, os ossos dos ombros, ai esses ossos dos ombros frios, mas o anjo tudo cobria com o seu corpo permeável. 
E quando um de nós desaparecia, o anjo dobrava-se respeitosamente, para logo a seguir ir acudir a um outro.
 "Mãe! Mãe!" Era o mar que víamos, o líquido infindo e escuro que nos tragava e puxava para o fim do mundo.






domingo, 4 de setembro de 2022

Já vai o sol pousando
desta forma prateada 
sobre a cidade.
É o verão que se vai, 
despede-se acenando 
através das asas 
das andorinhas 
que abandonam os beirais 
em bandos delas, no ar.
O sol pousa de outra cor, 
e eu olho, como se
pela primeira vez,
esse enigmático
brilho alaranjado, 
que é o sol a anoitecer,
pousando, 
metálico, sobre a cidade.
O verão morre assim,
cor de fogo,
e quando vi as aves 
chegarem,  eu sabia,
era para
agora partirem 
rumo ao calor que precisam, 
lá bem longe, 
fugindo desta cor prateada 
do céu 
que é o verão a despedir-se
acenando através 
das asas das aves.


domingo, 28 de agosto de 2022

O Mistério da Rua Estreita

No verão, quando o rio perdia a violência e os seixos arredondados das suas margens se deixavam ver, eu e a minha mãe descíamos a rua estreita, e, enquanto eu olhava, atento, para o chão perigoso, ela segurava-me na mão para eu não cair. 
Passávamos pela casa preta, assim lhe chamávamos por causa das tábuas verticais e negras que lhe cobriam as paredes, avistávamos, por vezes, uma das duas velhas irmãs que lá  viviam, ocupada a regar as flores que saíam dos vasos de barro, ornamentando, suspensas, o varandim de grades centrado no primeiro andar.
 As duas mulheres nunca nos cumprimentavam, nem uma, nem outra, eram secas e antipáticas, talvez nem nos vissem, quem sabe... 
Como dizia, descíamos a viela pela calçada irregular, sempre com cuidado, embora os nossos pés praticamente descalços, metidos sómente em velhas chinelas presas entre os dedos, tivessem os passos moldados de tal forma às irregularidades, que íamos descendo, sem surpresas, até alcançar o rio onde, por aquela altura do ano, a água  corria devagar.
Havia uma  escada de acesso toscamente construída, daquelas que nem entendêmos se foi a natureza que casualmente a inventou, ou se a fizemos nós dos nossos passos repetidos, por ali andarmos vezes sem conta. Nessa altura, minha mãe quase me pegava ao colo agarrando-me pela cintura, para que o meu pequeno corpo não  perdesse o equilíbrio nos degraus que se me apresentavam enormes.
Éramos, tenho essas memórias pairando à minha volta, de um entendimento sem palavras, daí eu ter a recordação tão nítida e silenciosa dos murmúrios da água e dos rumorejar que provocavam as  asas dos pássaros entre as folhas das árvores, do sorriso dela e dos seus olhos infinitos. 
Fazíamos das pedras maiores os nossos bancos de jardim, e eu sentava-me a olhar, ora alguns reflexos que se iam formando na superfície líquida, mesmo à minha frente, ora algum peixe que saltasse lá mais para o fundo, próximo da outra margem. Quanto à minha mãe, não sei o que olhava. Via-lhe o perfil bonito a sair dos cabelos desalinhados, os olhos fixos em nada, nem os saltos dos peixes a distraím daquele ponto imaginário na água, nem tão pouco os patos deslizantes a faziam pestanejar.
Por vezes, eu levantava-me e explorava um pouco a zona circundante, ia até onde podia ir, chegava-me à frente o mais possível sem molhar os pés, ou ia para trás e subia duas ou três pequenas reentrâncias de terra, lá no único canto que me possibilitava a vista de algum pedaço  da aldeola, para eu espreitar. Só duas casas, surgiam destapadas por entre os ramos das árvores frondosas que existiam por ali em quantidades quase selvagens.
Numa delas, a mais alta, o homem lá estava, com os cotovelos apoiados no granito da janela. Tinha uma camisola branca de alças brancas e, mesmo nos meses de gélido frio,  permanecia sempre lá, no mesmo sítio, com a mesma roupa, como uma estátua de carne e osso, a observar o fumo do seu cigarro desvanecendo na neblina.
Se me aventurava por caminhos perigosos, a minha mãe aparecia ao meu lado para me conduzir na minha curiosidade, ou, se necessário, para me levar dali.
Depois de um tempo de horas ou minutos, nem sei dizer,  talvez segundos, ou dias, regressávamos subindo a rua. Havia um beco do lado direito e eu tinha uma grande curiosidade em saber onde terminava porque desembocava numa floresta sem luz, ou pelo menos era o que  parecia, mas nós nunca virámos para ali, continuávamos sempre a direito, até eu adormecer.





segunda-feira, 15 de agosto de 2022


Havia sempre qualquer coisa a invadir os poemas, podia ser o mar revolto, ou a luz do sol, ou um dia absolutamente cinzento, ou outra qualquer circunstância  temporal, sim, porque o tempo também os invadia, galgava, como as ondas, as rochas mais imponentes, voava como as gaivotas e pousava na água para se alimentar.
Os poemas,  sólidos enfim... talvez nem tanto, os poemas sentiam os incómodos na pele, os poemas tinham pele bronzeada, brincos de búzios apanhados ao luar, talvez... vento nas folhas verdes, pássaros pousados voando sobre os fios da eletricidade e escrevendo recados redondos abaixo das nuvens desenhadas.
Os poemas sentiam-se ultrajados, instáveis, inseguros,  com as nortadas que os viravam de pernas para o ar, interrogavam-se sobre a existência frágil a que estavam sujeitos, previam a  morte eminente, as palavras de que eram compostos vogando no vácuo, despedaçadas.
Entrementes, as ondas iam desenrolando na praia, o mar insistia em encharcar as palavras, separar os versos, até não existirem. Que medo!
O poeta olhava a trajetória da luz invadindo o vidro do copo e o líquido transparente que lá estava dentro, com os seus poemas submersos.
Ontem,
Na água salgada havia um brilho arrebatador, porventura  cristais de sal, era, tinha sido uma noite de grande luminosidade, de sombras bem definidas nas paredes das casas brancas, havia sempre qualquer coisa a invadir os poemas, não sei...









sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Eu, que tinha os olhos alinhados com a água, 
já  lhe tinha percebido a falta de espaço.
Bastara observar a sua superfície convexa 
para entender que as frágeis ligações dos seus átomos
estavam praticamente a ceder.
As gotas caíam, compassadas, 
uma a uma, 
como é de esperar das gotas que tombam das torneiras mal fechadas,
e caíam direitas, perfeitas,
sólidas como aventamos que os líquidos não possam ser.
O ruído foi impercetível. 
Teria sido necessário o silêncio absoluto inexistente
para que se pudesse ter ouvido um tão ínfimo som.
A última de todas elas, lá veio ela,
foi tão suave como outra  qualquer, 
nem provocou turbilhão, 
nem ondas concêntricas muito grandes, 
nem nada verdadeiramente assustador, a bem dizer.
Mas o mal estava já  feito,
Estavam iniciados os movimentos das moléculas
que deslizaram até ao fim do cilindro gigantesco.

E eu, que tinha os olhos alinhados com a água, 
observei-a a agigantar-se contra mim, furiosa e forte, 
como supomos que a água não deva ser.




terça-feira, 9 de agosto de 2022



A cair sobre o centro da mesa havia uma composição  de flores, 
tão delicadas que nos foram aconselhados movimentos suaves
para que não  perturbássemos a sua harmonia 
com as nossas deslocações  de um lado para o outro.
Leves, então, me pareceram os passos que estávamos a dar, 
mais subtis e silenciosos  do que noutra ocasião qualquer.
Não eram pérolas que elas tinham, mas sim gotas de orvalho,
retidas como que por magia,
interrompendo o ciclo que as fazia evaporar e renascerem no outro dia de manhã.
As sua pétalas translúcidas, eu juro, permitiam a passagem dos raios de sol, 
sem que esse fenómeno fosse apenas a invenção de um homem sonhador.
Deixei de ver, ou sentir, a velha mobília,
só existiam corpos dançantes, 
lembrando o tempo em que as valsas felizes se ouviam pelo salão.
Eu esquecera todos os contos para crianças, 
apenas me lembrava de uma página ao acaso que continha um vestido azul.








segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Ela,
ora aproximava
ora afastava
o seu corpo redondo
do meu horizonte
visível.
Eram coisas da física
velas de um barco
à vela
que empolavam 
com o vento
ou remoínhos 
que se formavam
como doidos
devido aos movimentos
circulares
da massa de
àgua.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022


Naquela 
noite
irradiações 
de luz 
sucederam
a chuva
dissipando
as nuvens
e revelando
um sem número
de constelações


E finalmente,
também 
a grande lua, 
"também"
"lua"
"grande",
"redonda",
"cheia",
tantas
palavras 
inadequadas
para um poema
verdadeiro.

terça-feira, 19 de julho de 2022

Betinha e Filipa eram irmãs. 
Apesar do parentesco tão próximo, eram pessoas completamente diferentes, não tanto no que respeita ao aspeto físico, no que eram, aliás, muito semelhantes, mas sim no comportamento. Tinham sempre opiniões  diferentes, sentidos de humor completamente opostos, Betinha era uma grande trombuda e Filipa ria-se por tudo ou nada, discutiam por qualquer programa de tv, ou #encruzilhada da vida, o que fosse que as levasse a tomar uma posição.
De forma que percebi de imediato, eu que as conheço muito razoavelmente, que haveria de ser quase  impossível entrarem em consenso a propósito de assunto tão delicado.
Combinámos um cházinho em casa delas, hábito que decorria com alguma frequência dada a proximidade que sentíamos umas pelas outras, e logo percebi, no momento em que Filipa me abriu a porta, que estavam a ter uma discussão cerrada.
Quando entrei na sala, Betinha esta a sentada num cadeirão com cara de poucos amigos.
_Vá, lá,_incentivei eu. _Contem-me o que se passa. Talvez possa ajudar._
Normalmente tentava não tomar partido algum, mas pareceram-me tão incomodadas, muito embora, claro, Filipa estivesse a fazer um enorme sorriso, só quem a topasse verdadeiramente sabia que os seus sorrisos não espelhavam a sua boa disposição, e Betinha "vestisse" aquela  cara de poucos amigos, o que também  não  queria dizer rigorosamente nada, pois fazia parte da sua maneira de estar, a verdade é que lá  consegui que expusessem, com algumas reservas, aquilo que as estava a afetar.
_Não temos nada para discutir!_declarou Betinha, irritada.
_Temos, sim!_ respondeu Filipa a rir._Tu é que não estás para aí virada. És sempre a mesma._
_Não sou!_
_És!_
_Não!_
_Sim!_
_Não!_
_Viram?_ fiz-lhes ver com a minha muita experiência  de vida. _Afinal é fácil de resolver. Ai, as meninas! Parecem umas crianças. _ 
E, após terminar o meu chá de doce lima, saí porta fora com a boa consciência de, mais uma vez, ter praticado o bem.



em dia de encruzilhada, mas tratam-se das recordações.

A carne escura e intensa pintada com o aroma do vinho e das folhas de louro 
E o aroma embatia nas paredes de pedra da cozinha e aí ficava preso, por umas horas, até desaparecer pelas janelas, muito longe do alcance das nossas pequenas narinas esfomeadas.




sexta-feira, 15 de julho de 2022

Atlântico Norte

O que me reteve
foi o pavão
colorido
pasmado em frente
a um canto
e abafando uma boa 
parte 
da melodia
que a hoya extraordinária 
cantava
através das suas lágrimas 
de cera.

Mais tarde,
agarrei nessa
pequena
situação inusitada,
que observei tão
pasmada como o 
pavão 
pasmado
que olhava para mim,
e fiz dela mais
um dia qualquer.

terça-feira, 12 de julho de 2022

#Zélia

Zélia, para não ouvir o choro insistente da criança, afastava-se da mãe e do irmão,  caminhando pelos montes de mato rasteiro e selvagem, que crescia pelas colinas, debaixo do sol.
Numa dessas tardes, em que já  tinha caminhado o suficiente para que a voz do bebé se tivesse dissolvido na atmosfera, a miúda embateu em qualquer coisa invisível, como se um vidro muito bem lavado e transparente estivesse a impedir-lhe o caminho.
Deu um passo atrás e tentou tocar em algo que não via mas que haveria de estar por ali.
Chegou as mãos à frente, bem abertas, e com elas sentiu, de facto, uma superfície lisa e aparentemente arredondada. Efetivamente, o que a impedira de prosseguir era uma edificação  de forma tubular, formato que percebeu após seguir as suas próprias mãos  que foram rodeando o vidro até completarem uma volta de trezentos e sessenta graus,  atingindo assim, Zélia, o mesmo sítio, que reconheceu pela colocação estratégica de alguns arbustos de estevas. 
A curiosidade não tem limites para uma criança e, numa atitude de reconhecimento, voltou a circundar o objeto, uma e outra vez, até comprovar realmente a sua descoberta.
Após meia dúzia de voltas, Julieta parou, baixou-se para perceber se aquilo estava enterrado na terra e elevou-se o mais possível pondo-se em bicos de pés e esticando muito os braços.
Não soube como fez, mas a verdade é que tocou numa ligeira saliência, que lhe deu acesso, como que por magia,  ao interior do tubo.
Estando lá dentro, a menina, sem qualquer controlo sobre o sua própria vontade, começou a elevar-se, muito rapidamente, até atingir o alto da torre,  longe do chão umas boas dezenas de metros. 
Havia, no centro do compartimento, sem ângulos visíveis em redor, só transparência e luz, uma cadeira branca. Zélia sentou-se.
Não  havia mais do que a paisagem absurda das videiras alinhadas, que desenhavam correntes verdes no chão, quadrados de telha vermelha formando, ao fundo, retalhos de vários tons, o rio tapado, na grande maioria do seu percurso, por salgueiros e mimosas, enormes monstros que se moviam devagar enquanto a brisa circulava por eles. As águias sustinham o vôo e planavam à sua frente, até mergulharem em direção ao solo, em busca de alimento.
Pela janela, aberta de par em par, Zélia viu o irmão que adormecera finalmente e a mãe preparando a refeição. E foi quando abriu os olhos, porque adormecera, também ela, debaixo de um grande cedro, enquanto as formigas caminhavam pelos seu pés nús, acordando-a com uma leve comichão.






terça-feira, 5 de julho de 2022

Um Tornozelo Atrasado.

Quando a idade o atingiu, já como um peso pesado nas costas, nos braços, nos tornozelos, Jacinto criou o estranho hábito de vasculhar o lixo.
Tudo começara num fim de tarde em que fora despejar o seu, gostava de o fazer na frescura daquela hora, quando todos já  se encontravam recolhidos nas suas casas e na azáfama do jantar, e também era bom porque acabava por dar algum movimento ao corpo, para ele não  se dasabituar.
Vira, ao abrir o caixote carregando o pé no pedal, um saco com velhos brinquedos sem préstimo, e achara graça ao marinheiro sem um olho, a dois cubos coloridos e inúteis, um vermelho e o outro amarelo, tão amarelo que lembrava as matizes do fogo, uma cor que valia a pena preservar.
A partir desse dia, sempre que lhe era possível, evitava fazê-lo se estivesse alguém  a passar, por exemplo, ou não  arranjasse justificação  que dar a si mesmo para se dirigir aos caixotes, Jacinto agravessava a estrada e caminhava o resto do passeio até lá chegar. Depois levantava, com a ajuda do pé direito, a grande tampa verde, e espreitava, com olhos perspicazes, os sacos e saquinhos que lá  estavam dentro. 
Um saleiro substituído, uma colher de pau, uma lista de compras, "cebolas, manteiga, leite..."
Por vezes, quando chegava e havia espaço na mesa da cozinha, o homem admirava os obectos que acabara de expor para si mesmo, olhava-os como troféus, mas se chegasse cansado dos degraus imensos até ao segundo andar, ou o tampo de madeira transbordasse de coisas, deixava por ali o que recuperara, assim, tal e qual vinham da rua, dentro do plástico desbotado do saco azul.
Eu via o homem, daqui da janela, sem que ele se apercebesse.
Olhava-o com a curiosidade com que olho para toda a gente, via-o nos seus processos difíceis de remexer o que estava no lixo e de lá sacar o que julgava fazer-lhe proveito, e levar.
Dias depois, voltava a acontecer e eu olhava, com um ombro encostado à esquina da parede e com a atenção de sempre.











domingo, 3 de julho de 2022

O rapaz divertia-se a ver como atuavam as três luas, projetando o seu corpo no chão.
Observava o seu próprio movimento através das sombras escuras que partiam dos seus pés. A maior e mais sombria prolongava-se pela terra redonda até  não se ver mais. As outras acabavam logo ali, uns míseros metros à frente. Se acenava um pouco com uma das mãos, logo elas se movimentavam, as três mãos direitas, mais ou menos ampliadas, conforme a distância e a inclinação.
A miúda chegou  e olhou-o por alguns segundos. Percebeu, sem haver necessidade de pronunciar quaisquer palavras, o que ele ali fazia, virou-se ligeiramente e impulsionou o corpo para se sentar ao seu lado.
Após sentada, ajeitou-se um pouco, para o equilíbrio ser perfeito, fixou as mãos nas  pedras e encostou, como ele, os calcanhares às reentrâncias do muro.
E assim ficaram, ligeiramente inclinados para a frente, sem falar. 
A dimensão  dos seus corpos vazios e escuros bailava no terreno plano, ao som do silêncio dos sítios por onde não passa ninguém,  era a  água que corria rio abaixo, onde peixes prateados dormiam nos cantos das lagoas ao fundo, cobertas de flores de lótus.
Havia três sombras de salgueiro na superfície do espelho que formava o caudal do rio, esse caudal que depois se  alongava na foz em vários braços. 
Mantiveram-se quietos até que  se cansaram de  dançar no chão,  o que aconteceu logo assim que nasceu o sol. Um sol, apenas um, para um luar de três luas, que lhes  agitou  um sonho, fazendo com que se esfumasse  das suas memórias. 






domingo, 26 de junho de 2022

#Lazer

A chuva pintou a cidade de azul.

A água era imensa,
mas coube toda no chão,
preencheu o abatimento
e as depressões dos velhos passeios,
e era tão transparente
que refletiu a iluminação  das montras
que vibrava
escondida no nevoeiro.

Aquela cidade, que era azul, 
também,
quando havia sol por causa 
do céu imenso e do rio.

Mas, então, caíu
a noite triste sobre ela, 
a chuva parou de tal forma 
que só os galhos e troncos
caídos no passeio 
e o outono ensopado nas poças
eram vestígios do temporal. 

A noite aquietou as sombras 
que antes se moviam no vento. 

A água coube toda no chão, 
mesmo a que pingava das caleiras
a que tombava das folhas das árvores, 
ou a que descia com elas 
pousando no asfalto sem cor.

Era a cidade azul, por muito verde
que houvesse nas copas das árvores   
ou as telhas fossem vermelhas, 
caíu a noite.

sábado, 25 de junho de 2022

Para #XS

Uma das minhas avós era tão pequenininha que mal se via.
Nem dava para lhe lavar a roupa na máquina porque passava pelos filtros e ia entupir os canos, de forma que tudo tinha de ser lavado à mão.
Mas isso nem era o pior. O pior é que às vezes não conseguíamos encontrá-la, lá em casa havia o material adequado, lupas, binóculos, e até um telescópio comprámos, mas, mesmo assim, a senhora desaparecia muito e era difícil de encontrar.
Uma ocasião até foi parar ao caixote do lixo, misturada com as cascas de batata.
Um dia, desses fatídicos em que já desesperávamos pensando que daquela vez é que a tínhamos perdido para sempre, fomos encontrá-la numa alface, que era, aliás, um sítio habitual, não sei como ninguém se lembrou, já que a senhora aproveitava este adequadíssimo legume como toilette, foi até o meu filho, o seu neto predileto, diga-se em abono da verdade, que se lembrou disso, e muito bem visto, concordo, pois que lá tinha tudo, grandes gotículas de água para os seus banhos e a sua higiene pessoal, podia fazer as necessidades à vontade, já que quem prepara saladas amiúde bem sabe que há sempre uma ou outra caganita de lesma, ora quem lava de uns, lava de outros, não custa nada, e, realmente, como dizia, lá estava ela, já dentro de um alguidarzinho a tentar subir por aquele material escorregadio, sem conseguir.
O Asdrúbal, que é muito traquinas, o meu sobrinho, filho do Alcides, agarrou no recipiente, viu a avó, e não, não acredito que tenha sido por maldade, foi por ingenuidade, talvez, abriu a torneira no máximo para a ver rodopiar com a água só com a cabecinha minúscula à tona d' água.
Ele é bom rapazito, eu sei. Quando se apercebeu da palidez da senhora, retirou-a imediatamente, agarrou-a pelos pézinhos e sacudiu-a para que expelisse todo o líquido dos pulmões, já por este gesto se vê.
É complicado quando se tem uma bisavó #XS.

Rosas

Uma grande ramada de roseira 
brava
carregada de rosas rosa estava 
vai não vai para se partir
e encher de rosas rosa um pedaço 
de chão. 

Enquanto a chuva não  viesse,
ou não  pisassem as crianças
aquela parcela de relva 
proibida, 
a silhueta perfeita 
e delicada das flores
manter-se-ia, 
e avivariam tudo  em redor.

Era um tapete só para olhar
de pétalas sobre o verde,
mas assim que estivesse tudo 
ensopado,
não  sei, não...


quinta-feira, 23 de junho de 2022

Mal seria se eu não  tivesse alguém  das minhas relações  com o apelido #IOC.
Pois é, o meu amigo Eugénio é precisamente de quem vou falar, embora não  haja muito a dizer, porque o Eugénio é  uma pessoa pesfeitamente vulgar, dessas incógnitas que andam por aí aos biliões.
Durante a semana, vai para o emprego, pelas oito e trinta, para chagar lá  às nove se não  houver nenhum imprevisto, faz o seu trabalhinho descansadamente, e volta para casa ao fim do dia.
Em casa já  costumam estar a mulher com a filha nos braços, e ele pergunta-lhe sempre se ela precisa de ajuda nas suas coisas, e lá  vai, solícito, perguntar o que há, então,  para fazer.
Recebe uma ou outra tarefa, que executa com perfeição, e acabam por jantar ao mesmo tempo que alimentam a criança.
No dia seguinte, o mesmo acontecerá, até  ao fim de semana em que combinamos qualquer coisa, para desanuviarmos todos, das nossas vidas repetitivas.
O seu apelido é muito antigo, isso eu sei, vem de lá  dos países a norte, ainda quando ainda era Thor a dominar os países da branca neve.
Eugénio contou-me a sua história, porque eu, sem qualquer intenção, apanhei-o comer cubos de gelo diretamente do frigorífico. Algo me tinha chamado a atenção  ao passar pela porta da cozinha, ainda hoje estou para saber porque tive aquela intuição, continuo sem fazer ideia, a verdade é que entrei, sem medos, e lá  estava ele, de feições  transtornadas e todo molhado a devorar o gelo que eu precisava para as bebidas.
_Eugénio, o que se passa contigo, meu bom amigo?_ perguntei, genuinamente interessada. 
E foi nessa altura que ele me contou tudo.
Quanto a mim, que sei agora mais uma história  digna de ser escrita, a destes seus infelizmente, prometi não o fazer e quanto a ele, nada a dizer, nem aud


terça-feira, 21 de junho de 2022

Dinossáurio

#Dinossáurio colocou-se atrás da última pessoa  na fila que se formara para entrar no autocarro.
 Pisou os degraus devagar,  respeitando a ordem criada, e subiu lá para dentro como constituinte daquela serpente domesticada, mas, para ele, o tempo não batia certo porque demorava, ora uns segundos demais, ora um tempo de menos, sem haver a sincronia essencial para que se adaptasse à recente condição de estranho no meio de desconhecidos.
 Passou pela máquina, introduziu o bilhete no obliterador e sentou-se assim que pôde num lugar à janela, para se refugiar na paisagem exterior e assim não ter de enfrentar ninguém.
 Dali, ia vendo a cidade que se movia movia através dos transeuntes, dos sinais inventados para o trânsito fluir nos cruzamentos, evitando assim os acidentes, através das montras tapadas pelos toldos onde, às vezes, se protegiam do sol crianças de mãos dadas com as suas mães protetoras, todos tão longe e distraídos  na sua azáfama diária que nem davam por ele.
Entraram e saíram umas quantas pessoas da viatura.
 Dinossáurio, o tímido, estava quase a chegar ao seu destino. Teria que se levantar, caminhar até ao varão metálico mais próximo onde se agarrasse e que contivesse, também, um aviso de stop para ele premir, dando a indicação necessária ao motorista para acionar a abertura da porta,  e então a campaínha soaria muito alta, e os passageiros, atentos, dariam pela sua presença, teria que suportar os olhares durante os oito passos infinitos até  atravessar a porta automática e sair para o ar livre. Aquele som seria fatal, chamaria a atenção de todos e a janela estaria longe para que pudesse refugiar-se nas suas características de fronteira transparente onde colasse a testa para ver através do vidro. Iria ficar exposto como se estivesse nú. 
 Levantou-se com constrangimento. Só lhe restaria o chão  para observar, assim houvesse chão  até ao final do acesso à porta para a liberdade.
Acabara o seu caminho habitual,  de quatro paragens.
 Ergueu-se do acento perseguido pela culpa, a culpa grande, a maior de todas.
 Tinha ruídos de eletrocoisas nos ouvidos, enquanto houvesse sol, havia barulho, audiomotores, ciclopneus a raspar no asfalto e gritos de sirenes, comboios violentos atravessados nos passos das vidas das pessoas.
 A mulher velha de vestido verde fixou a mão do homem a dirigir-se ao botão  de stop, percebeu-lhe o braço a descolar do corpo, esse braço a inventá-lo muito maior do que podia, ou queria, alguma vez ter sido, aumentando-lhe o perímetro da existência assustadora e gigante.






segunda-feira, 20 de junho de 2022

#Fugir

Leonor fugiu da fuligem
que circundava a casa.
Entrou lá dentro, esbaforida,
e após respirar três vezes seguidas, 
para recuperar o fôlego, 
inspira, expira, inspira, expira,  
fechou a porta com força
e tratou de verificar 
as portadas das janelas, 
os fechos, as aduelas,
para que ela, sorrateira, 
não entrasse e lhe estragasse 
a tarde comprida,
cruzando os ares até ao fim do dia
e vogando em frente ao seu nariz.
As partículas, de cor cinzenta, 
ficaram retidas lá fora 
e com o passar do vento,
dissiparam-se e ela pôde, 
finalmente descansar.
Adormeceu, Leonor,
sonhando com os ínfimos corpúsculos
que deixara a morrer.








 

domingo, 19 de junho de 2022

O Meu Caderno

Vou aproveitar este caderno para ser outra pessoa, deixá-lo em cima de uma mesa, talvez, para que ele me recorde, na sua desarrumação consciente, o propósito de estar ali.
Se, por acaso, arrumar, cuidadosamente, o meu material de escrita, como escreverei?
Mas, se o deixar pousado onde fica, as folhas irão acumular-se pela casa toda, sufocando-a.
É o mesmo eterno problema, o mesmo ciclo sem fim.
Questiono os apontamentos que circulam entre a minha cabeça  e os cadernos espalhados, as folhas de arestas bicudas e os panfletos de costas lisas onde em tempos chegados rabisquei qualquer coisa para ser abandonada.
Num futuro, talvez próximo, talvez longínquo, não haverá, em branco, superfícies disponíveis e as canetas e os lápis deixaram de existir, serão sómente cadáveres enterrados nas gavetas.
Por isso mesmo, serei outra pessoa neste caderno, do qual, admito, não saberei que destino irá ter, ou onde estará nos momentos em que precisar dele.
Aqui, sem qualquer fronteira, ou prisão, e se mantiver os cuidados necessários para que não se perca no reboliço da casa viva, onde papeís lixo contam uma história  sem princípio nem fim, falarei do que eu quiser e maior liberdade não há.
O tempo, passa, hora a hora, e assim ficará aqui descrito, como se, sem consciência, não  lhe desse qualquer importância.
Se vir algo que aos meus olhos se revela muito belo, uma cor surpreendentemente viva, ou um pormenor gigantesco que me chame a atenção,  um desses cantos esquecidos onde pode caber a biqueira de uma bota colossal, nem me interessa o que lá possa caber, e me apetecer, abro mão de uns minutos para aqui relatar algo que nunca aconteceu, é meu dever.




quinta-feira, 16 de junho de 2022

A Barraca

Após  uma grande chuvada, Sara saíu porta fora 
para apreciar o regresso do sol.
Havia, num dos quatro cantos esquecidos do quintal, 
trevos em flor, e ela fletiu as pernas 
e afundou um joelho na terra húmida para os ver melhor.

O cão, que esperava o fim da chuva
debaixo de um telheiro improvisado, assim que deu por ela, 
ainda nem a tinha visto já  percebera a sua presença,  
começou a abanar a cauda de felicidade, 
com o corpo ondulante de alegria acompanhando a excitação.

Sara levantou-se e sacudiu a terra que lhe ficara presa no joelho sujo.

Fez trinta festas ao animal, enquanto este lhe lambia os cabelos espessos
e engolia algumas partículas da fuligem de uma fogueira  a luzir ainda do fogo da noite,
e que o pai preparara com madeiras que buscara pelo bosque.

Todos os dias se chegavam ao seu calor crepitante
enquanto as brasas incandescentes brilhavam 
e as chamas se lhes refletiam nos  olhos.







quarta-feira, 15 de junho de 2022

Vou #arriscar o relato do que se passava naquela vila, perdida numa planície sem fim.
Era verão e os insetos moviam-se com mil movimentos de asa, sobre as flores, com a terra a perder de vista, de ervas rasteiras e secas, não havia qualquer ruído na amosfera, havia sim  calor e muita luz.
As abelhas, pretas e amarelas, eram as raínhas das flores, das escassas flores que pendiam dos suportes presos aos beirais. 
Havia um regador, sem mãos que lhe tocassem, ou qualquer outro sistema controlo à distância, que se inclinava sózinho para verter a água nos canteiros e, como que por magia, a sua água era inesgotável.
Era de plástico verde e guardava-se sózinho numa despensa vazia sempre que terminava a importante tarefa de regar.
Os gatos dormiam a sesta, alheados do silêncio  que envolvia a atmosfera quente.
As abelhas, naturalmente, iam deixando o aroma do polén no ar por onde passavam, não  sei, disso não me lembro, sei que entravam e saíam pela janelas danificadas, brilhavam entre os rasgos iluminados dos raios de sol imperturbável  e geométrico, nas casas do casario sem ninguém,  de edificações muito baixas e de telhados desarranjados.
No mesmo  alpendre das flores eternas, balançava uma cadeira de baloiço, e balançava sem a existência de vento ou outra similar força dinamizadora de  movimento.
Balouçava como um suicida, cuja existência, por obra de um destino cruel, deixou de lhe fazer sentido, ou como um fantasma do passado ou como outro alguém inexistente.






sexta-feira, 10 de junho de 2022

Uma Zoeira Nos Ouvidos



Para mim
alguns  poemas são
fortes como  fortalezas,
resistentes, mas,
mesmo esses,
tombam, por vezes,
quando alcançados
pelos projéteis de uma
guerra
ou quando consumidos
pela erosão do tempo,
ou, ou, ou
quando têm fome.


(Se, de facto, assim for,
é imperativa
a recontrução
mirabolante 
dos destroços magoados, 
das letras soltas 
caídas.)

Os poemas, são
palavras em fio, 
ou em torrente,
ou ainda,
palavras por dizer
retidas atrás das cordas
vocais.


São gotas escritas
pela chuva,
gotas essas
que vou buscar
para que não desapareçam,
para que permaneçam 


um pouco mais
do que os segundos
da sua curta vida
balançando nas pontas
das folhas 
até à queda fatal.


Os poemas
também estão nos botões de flor,
fortes e resistentes,
até 
nas casas caídas,
ou na imponência das enormes
pedras, perdidas no chão,
sufocadas pelas hastes 
enrodilhadas
de pétalas vivas.
por onde o sol atravessa
tornando-as, imagine-se,
transparentes.

Por  certo que na chuva,
que pinga, 
vejo tudo onde
porventura nada está,
mas não posso deixar de 
reparar.



sexta-feira, 3 de junho de 2022

Era uma vez um burro, um pavão e uma cangurua que viviam na mesma quinta.
O burro entretinha-se,  pelo dia fora, a dormitar em silêncio. Viam-se-lhe os olhos pestanudos a esmorecer, até quase fecharem. De quando em vez lá  se lembrava de pastar um pouco, e então dobrava o pescoço no sentido descendente e enfiava o focinho na erva fresca. De resto, nem uma palavra, só zurros quando se lhe prendiam nas voltas do intestino algumas palhas fibrosas, mal escolhidas da terra e inadequadas à sua dieta.
Por sua vez, o pavão, embora estivesse, por força dos mandamentos da natureza, impedido de falar, pelo menos lançava uns gritos agudos que trespassavam os ouvidos de qualquer um, gritos audíveis a uma distância  considerável, mas palavras, palavras propriamente ditas, ele não era capaz de as dizer, de forma que abria as penas da cauda carregadas de profirinas e ali ficava, equilibrando o corpo azul brilhante no chão incerto e mole por causa dos aguaceiros.
A cangurua tinha três filhotes na bolsa, tão pequeninos que mal se viam, e, talvez por esse motivo, pela atenção constante que tinha que dispensar aos seus bebés, também  se mantinha em silêncio  concentrado e responsável, e para mais que nenhum daqueles dois queria conversar, o burro dormia, ou pastava, e o pavão, ora gritava, ora abria em leque a sua cauda extravagante.
Nisto, e inexplicavelmente dada a paz habitual dos seus dias de animais de quinta, os bichinhos tiveram uma belíssima surpresa. Um anjo de asas grandes e brancas desceu dos céus à terra e colocou-se entre os animais.
O burro foi o primeiro a sentir a angelical presença. Deu um zurro um pouco diferente dos habituais por não  saber como traduzir em burrês semelhante visão, mas, ainda assim, despertou a atenção  da cangurua, que ficou desconfiada da criatura, não sabendo se ela poderia interferir, e como, se para o bem se para o mal, na sua gestação.
Quanto ao pavão, simplesmente invejou a natureza bela do anjo, enquanto esperava pelo desenrolar da situação.
_Não temeis, venho por bem. A partir deste momento os animais podem falar!_
As três criaturas entreolharam-se, admiradas, mas o burro foi o primeiro que tentou a sua sorte com a nova capacidade que lhe estavam a oferecer.
_Porra! Que fixe!_ disse bem alto, ainda muito influenciado pelo som da sua voz zurrante, mas já  com grandes espectativas para a possibilidade desta nova forma de se expressar.
O anjo, ao ouvi-lo, perdeu o seu semblante pacífico  e mostrou-se bastante tenso.
_Então eu permito-te que fales e tu vais logo começar com um palavrão? Não. Isto não é boa ideia.
E assim como apareceu, eclipsou-se no ar, deixando os três sem palavras.
Com a sua visão binocular de grande alcance, o pavão viu algumas penas brancas de anjo, caídas ao lá ao fundo, ao pé da cerca e preparou-se para as ir buscar. Com o bico, apanhou-as e colocou-as em si, para ficar ainda mais bonito.
Só os três bebés canguru, talvez porque o anjo não fosse tão intransigente como quis deixar transparecer,  aprenderam, mais tarde, a falar.









segunda-feira, 30 de maio de 2022

Duas senhoras sentadas na relva de forma muito composta, conversavam sobre os filhos. Falavam de como eram amigos uns dos outros, na sua forma infantil de serem amigos.
João, que tinha por hábito observar os astros da janela do seu quarto, grandes como só na imaginação de uma criança  podem ser, vivos durante o dia limpo, resplandecentes pela presença de tanta luz, e tão próximos que mais pareciam saídos de uma ilustração, daquelas tão encantadoras que nem os olhos de um adulto resistem a tamanha suavidade, João passava horas nessa contemplação, a mãe contava como via aquela imagem estática do seu menino emoldurado pela janela, de costas para o quarto e para os brinquedos que por lá dormitavam à espera de brincar com ele, contava como não  o interrompia, ou se o fazia era apenas para lhe dar um beijo suave na têmpora e regressar rapidamente aos seus afazeres.
Roberta e Sebastião tinham outras formas, bem diversas, de se divertir, relatava a mulher loira, de costas muito direitas, enquanto depenicava uma bolacha que a outra lhe tinha oferecido.
Por vezes, caíam em queda livre,  até não se verem mais, sem medo, e depois descreviam-lhe o que tinham visto, na linguagem mais simples do mundo, igual à de todas as crianças pequenas, sem rodeios ou maus pensamentos, só a mera observação dos factos, tão límpida e honesta como só dois meninos podem ver.
Da primeira vez a senhora assustara-se horrores, achara que os perdera para sempre, mas quando regressaram, horas depois, e lhe falaram das gotas de água que caíam direitinhas ao seu lado, cada uma transportando a sua preciosidade, uma cobra enrolada, a bailarina de uma caixa de música, uma flor de #lótus de um azul muito azul, uma velhinha sentada numa cadeira branca, ou como tinham subido os primeiros degraus de uma escada que parecia não  levar a lugar algum, ou daquela gaiola tão grande, por onde se passava entre as grades, pelo menos eles, talvez uma pessoa maior não conseguisse, e de como, lá dentro, brincaram aos piratas com um urso de peluche, ou do caracol que subia a colina pintada de lápis de cor verde claro, com a chaminé  da sua casca lançando vapores de refeição cheirosa, ela nunca mais se preocupara com o assunto.
A tarde caía e as duas mulheres levantaram-se para regressar a casa. Uma delas puxou com delicadeza a manta que antes estendera para se sentarem. À medida que a dobrava, o cenário  parecia decompor-se. As cores misturaram-se, as coisas perderam a forma e foram engolidas pelo princípio da noite e pela sua escuridão, onde agora as estrelas eram muito maiores.



 

domingo, 29 de maio de 2022

Yoko

Lá vens tu, ó flor, 
pela atmosfera acima
ocupando espaço
nessa tua 
indolência 
enquanto na praia
uma rocha pode estar
em risco
de cair.

Tu que adoras o sol 
empenhado 
vês-te incapaz de evitar 
um dia 
escuro,
essa é a verdade.

A família acordou
vezes sem conta
enquanto a hera
ia comendo a casa 
lentamente.

Quanto a mim,
eu tinha quatro folhas 
em papel de prosa
mas a porta rangeu
por causa do efeito do
silêncio 
e o poema entrou em grande
velocidade 
com o seu ruído habitual.

O poema 
que era o projeto de 
atear o fogo
antes que morresse
lentamente,
ó tu, que adoras o sol.

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Entre a porta e a o chão
fica o espaço  razoável 
de uma falha 
com um centímetro de altura.
Por lá, 
entra o vento vindo da rua.

Se o vento vem da rua, 
traz com ele 
a agitação dos carros, 
o nervosismo dos transeuntes, 
ou alguma sombra esquiva
que viu desaparecer numa esquina.

Parece-me que...
entra o vento a toda a velocidade...

Então paro eu.
Dedico-me à observação 
do vagaroso crescimento das flores,
ao vôo da abelha,
que todos os dias, sem falta, 
vem buscar o seu quinhão de 
rosmaninho, 
todos os dias, sem falta...

Daqui,
vejo os automóveis 
que atravessam o rio, 
um rio que passa debaixo da estrada,
pela qual os automóveis circulam, 
nem sabem eles o que têm sob os pés,
sob as botas, sob o carro...

Sobre...
sobre um caudal de água 
que passa debaixo do asfalto.

Lá  vem a flor, 
vagueando pela atmosfera acima
ocupando o seu espaço indolente.

Ponho-me à escuta...
O vento parou.



terça-feira, 17 de maio de 2022

Zarpar

Não havia visitante que não se encantasse com a ilha de #Zarpar.
Por muito viajado que fosse, ou mesmo que a sua terra natal estivesse entre as mais belas do mundo, aquela ilha tinha algo de diferente, e de tão deslumbrante que eu própria, habituada a criar cenários imaginados, onde não há  limites para a beleza das coisas, me senti maravilhada.
Estávamos do lado das rochas alaranjadas e era por grandes buracos nelas existentes, todos perfeitamente circulares, que se observava a aldeia inclinada, de casinhas com tetos coloridos, incrustadas na falésia que parecia ter sido escavada para o efeito.
Um braço de mar brilhante separava-me do casario, e o sol, embora presente em todos os reflexos, apenas se adivinhava, não se deixando ver.
A humidade salgada entrava-me na pele, enquanto subia e descia, com os pés descalços as saliências dos rochedos, na ânsia de espreitar o encanto por todos os ângulos possíveis, por todos os enormes  olhos redondos que as pedras me ofereciam, em miradouros naturais causados pela erosão do mar.
Talvez fosse, não sei, um fim de dia, nas suas horas de ouro, ou um tempo inexistente. Em boa verdade e sem quaisquer mentiras, foi o que hoje sonhei.


quarta-feira, 27 de abril de 2022

O Feijão

Era uma vez um menino que gostava muito de ir à escola. Aprendia muito, brincava com os seus amigos, comia os bons lanchinhos que vinham preparados de casa, enfim, eram dias agradáveis, os seus, mas, naquela específica tarde, vinha no regresso das aulas pelo jardim, e pela mão da avó, pois a mãe trabalhava até  muito tarde, num tempo em que nem havia ainda horas e dias de descanso para esta gente trabalhadora, mas continuando, vinha muito satisfeito porque a professora lhe dera um frasquinho com um algodão embebido em água e com um feijão lá dentro, disse ela na aula, para todos ouvirem, que o feijão haveria de se transformar numa plantazinha pequena, com folhas e tudo, e ele levava o frasquinho que a professora lhe dera bem preso entre as duas mãos, com muito cuidado para não o deixar cair, como se de uma figura religiosa se tratasse, daquelas que nas festas da aldeia se destacam por entre os crentes. 
Chegou ao seu quarto, não  sem antes cumprimentar o avô, que dormitava no cadeirão da sala, e pousou o objeto em cima duma prateleira, que continha vários brinquedos deixados por ali na sua desarrumação infantil.
O menino foi dormir, e fê-lo como um anjo, apesar da impaciência  e da excitação  em que se encontrava, por causa das espectativas que lhe haviam criado, de uma espécie  de milagre que poderia acontecer dentro de um simples frasco.
Durante vários dias a criança  verificou se o algodão  tinha água suficiente, se a semente mostrava alguns indícios de germinação, não  queria ser ele, por negligência, a estragar o acontecimento.
Também nós, adultos, não  damos tanto pelas crianças que crescem, se por acaso vivemos junto a elas, não  tanto como a tia Alice, por exemplo, que, após quatro anos no Brasil, não  queria acreditar naquele rapazinho que tinha à sua frente, muito direitinho no seu fato azul. 
Explicando melhor, talvez, foi precisamente o mesmo fenómeno que aconteceu ao nosso pequeno herói, ele não  reparou que, ao invés do feijão  se desenvolver, era o algodão  que crescia desmesuradamente, já  transbordara do frasco e escorregara por ele, continuando pela prateleira e caindo pela estante abaixo, até  formar um grande monte no chão.
O feijão, nem vê-lo, e o menino chorava muito, não comia, por causa da tristeza  de tudo o que lhe estava a acontecer. 
Mas não  tenhamos sentimentos negativos em relação  a esta história porque nem tudo se perdeu.
Depois do sufoco do algodão  pela casa inteira, de ter inclusivamente, extravasado pela chaminé, pelas janelas abertas, e pela porta da cozinha, o menino, juntamente com o irmão  mais velho, que demonstrava desde bebé um espírito empreendedor fora do comum, viu ali uma janela de oportunidade para o negócio, tratando de contratar uma empresa de embalamento e outras minudências  necessárias  para lançar  um produto no mercado. Fazem parte, hoje, do grupo dos cinco maiores produtores de algodão  do mundo.




sábado, 23 de abril de 2022

escrevendo......

A minha casa fora construída numa pequena elevação  de terreno, um relevo mínimo, minúsculo,  se o compararmos com qualquer montanha, ainda que de pequenas dimensões.
O que é certo é que do alpendre, ou das janelas que viravam para aquele lado, conseguia ver tudo, melhor dizendo, tudo até ao limite da capacidade dos meus olhos, o que não  é a mesma coisa, não estar habilitado para visualizar determinada imagem, ou, de facto, não  existir nada para além dos campos ondulados, ou  do último ponto azul, de todos os pontos azuis acima do horizonte.
Resolvi dar um passeio.
Estava tão próximo do campo ondulante que, quarenta segundos depois, vi um #coelho a fugir, apressado e já os meus pés  pisavam pequenas flores amarelas, onde batia o sol  quase horizontal, num fim de dia por ali.
Do meu lado esquerdo, vi aquela figura vulgar, vestida como alguém que trabalha a terra, calçada como alguém que pisa os seus torrões, ou a sua lama, com uma naturalidade suja, com semblante ressequido de uma vida ao livre e descansando dos inúmeros afazeres.
O homem, sentado em silêncio sob a sombra de uma copa verde e baixa, com as costas apoiadas a um grande troco castanho, apoiava o antebraço no joelho, e a mão  direita  pendia-lhe, inerte e despreocupada, só o polegar e o indicador mantinham a pressão necessária sobre uma palha de trigo, que rolava, devagar, ora para trás, ora para a frente.
O lado oposto da minha pequena habitação tinha apenas uma janela, com caixilhos de madeira pintados de branco, e que nunca conseguira  abrir em toda a minha longa estadia, não sei se por defeito, ou avaria, sei que era apenas aquela árvore sombria que eu  vislumbrava, igual no verão e no inverno, os seus  troncos cor de barro, muito retorcidos como nunca vi outros, de formas geométricas, algumas assustadoramente artificiais. Nunca lhe despontavam folhas, logo, imaginava eu que nunca o tempo passasse por ela, contudo respirava vida e saúde, eu sabia, sentia, talvez, haver seiva densa a circular-lhe pelos troncos e tronquinhos, sedentos de qualquer coisa completamente inexplicável. 
Por algum motivo, que me sinto incapaz de perceber, a natureza camuflava a sua energia com aquela aparência moribunda, mas que, paradoxalmente, lhe perpetuava a vida, muito mais do que se sofresse, plena de normalidade, as metamorfoses inerentes às estações do ano.
A minha curiosidade era muita.
Eu não via mais nada por ali. Ou porque não  existisse mesmo, ou porque era incapaz de tomar uma outra posição  para observar o que se passava lá  fora, não sei. Sei que os caixilhos das janelas eram o limite da paisagem, a esquadria imóvel, recortada no fundo de uma parede sépia onde a sua silhueta retorcida se insinuava, assim, sem mais nada, talvez visse também uma ou outra aresta do barracão imediatamente ao lado da parede vil.
Os pássaros evitavam-na, oh,  se evitavam, nunca lá dei por algum, nem os corvos pousavam nela, ou águias, ou pássaros cantantes, ou os migratórios que, na sua vaidade orgulhosa, tanto gostam de se exibir, nem o vento a balançava. Podia ser um artefacto, uma imagem entre sonos, ou mesmo, e finalmente, um sonho das profundezas do inconsciente, uma mentira desgraçada para me deixar inquieta.
Eu caminhava já em sentido contrário, voltava para casa e a minha sombra agigantada precedia-me.
O sol praticamente deixou de ser ver.
Entrei.
Andei em linha reta pelo corredor, acendi a luz do candeeiro e espreitei lá  para fora.
A visibilidade começara a enrodilhar-se na  escuridão. 
A continuarem crescendo desta forma, os seus galhos, alguns em semicírculos perfeitos, um belo dia cairão.





domingo, 10 de abril de 2022

#Pinote

O Último #Pinote do Burrinho Zuzu. (Uma história para crianças)

Era uma vez um burrinho que andava a pastar num campo cheio de boas ervas para a alimentação de animais que comem ervas.
De repente, quando tudo parecia normal e tranquilo, o burrinho deu uma grande pinote e caiu para o lado, inanimado. 
Foram chamados os paramédicos de bestas, mas, quando chegaram e lhe mediram a pulsação de jumento, já nada havia a fazer. O Zuzu morrera de repente.
Todavia, crianças minhas amiguinhas, não fiqueis tristes porque o burrinho Zuzu foi para o céu dos burros e lá permanecerá para sempre, saltitando pelas nuvens.
Se acaso ouvirdes zurrar durante a noite, não é o papá que ressona, não. É o burrinho Zuzu a dizer olá.

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Era vidrada
aquela
água espelho
e eu, de onde
me encontrava,
com os 
olhos um pouco
acima 
da sua imensidão,
via ao longe
prédios, edificações,
pequenas torres 
brancas,
muito ao longe,
no horizonte.

E eu ali estava,
aonde
a água balançava
numa só onda
levemente
bilhante,
do lado 
do sol dourado,
e com os olhos
posicionados
um pouco acima
da imensidão
e da água espelho
vidrada 
da baía 
que ondulava, 
que ondulava 
sem fim.




sábado, 26 de março de 2022

#Espanto

Cidália queixou-se de Etelvina.
Já o tinha feito anteriormente, mas nunca tinha relatado os acontecimentos a Maria, dizê-lo a Maria foi a primeira vez.
Por duas vezes pedira ajuda a Simone, todavia Simone não lhe dera grande importância, os seus afazeres eram muitos, e em ambas as vezes deixou o assunto para esclarecer mais tarde. 
Cidália era muito gorducha, falhavam-lhe os joelhos gastos pelo excesso de peso e acrescidos das fragilidades ganhas com o passar dos anos. Os chinelos estavam-lhe grandes em comprimento para que lá coubessem em largura os pés edemaciados, e assim arrastava devagar pela pela casa seu o corpo grande.
Etelvina era mais velha dois anos e tinha uma cara comprida e magra.
Maria abriu os olhos de #espanto.
Cidália sempre vivera tranquilamente não esperando coisa nenhuma, e muito menos nos últimos anos.
Etelvina foi confrontada por Maria e, enquanto isso, dava passadas leves e nervosas entre a cadeira e o sofá e apoiava os dedos curvos, ora no tampo da grande mesa, ora na arestas do aparador. 
Maria abriu a porta e gritou por Simone. 
Simone entrou no recinto e confirmou as queixas.
Cidália garantiu as ameaças  de Etelvina, as palmadas nos ombros, o puxar dos cabelos, a perseguição rápida e eficaz. Numa casa de banho, às vezes no quarto, fixara-se nesse quotidiano e atentava de manhã  à noite uma oportunidade de a encontrar sózinha.
Cidália lançava-lhe palavras tremidas de receio, enquanto Etelvina a empurrava firmemente, sem vacilar, ou lhe puxava o cabelo, ou lhe colocava os olhos baços a dez centímetros dos seus.
Maria olhou Cidália, sentada numa cadeira, com as pernas afastadas, a barriga proeminente e o vestido azul. Depois olhou Etelvina e depois olhou Simone, insistindo em esclarecer.
Etelvina negou.






sábado, 12 de março de 2022

Um #Quinteto Informal


Preciosa da Silva tinha combinado um encontro com Raquel.
Havia já uns dias que  tentava encontrar-se com a amiga de modo a devolver-lhe uns pertences que lhe pedira emprestados fazia uns tempos.
Tendo combinado às cinco da tarde para um lanche informal, e já  um pouco atrasada, meteu para dentro de um saco os três objetos que precisava transportar.
O primeiro era um #perliquitete, com umas belas aplicações de triptonéscia, uma peça  muito útil na pulverização de estórnios, e os outros dois eram salmendros, um de maiores dimensões e outro bastante mais pequeno.
Com a agitação  que provocam as saídas apressadas, e que é comum à maioria dos mortais, Preciosa não teve os devidos cuidados no transporte de peças tão sensíveis, não as protegeu da trepidação do caminho, envolvendo-as em papéis e plásticos, e elas foram a embater umas nas outras até chegarem às mãos da dona.
As amigas cumprimentaram-se, sentaram-se ambas à mesa de uma casa de chá, mesmo em frente a uma grande janela, e Preciosa, antes que a conversa animada lhe fizesse esquecer o propósito do encontro, tirou do saco os três  objetos que colocou em frente a Raquel para ela os guardar na sua mala.
Raquel quando viu o periquitete sem a sua esmórnia fez uma  cara que revelava grande contrariedade. 
_Então a esmórnia do periquitete? Deves estar a brincar comigo!_ proferiu, questionando Preciosa.
_Hoooo!_ respondeu a outra_ Não sei. Deixa cá ver._ e dizendo isto, meteu o antebraço todo dentro do saco para ver se a esmórnia do periquitete tinha caído lá para o fundo, ou tinha sido o gato Romeu que, em casa, a tinha partido sem ela dar por isso. _ Está aqui_ concluiu, satisfeita.
Mas Raquel estava muito aborrecida, e pior ficou quando olhou para o salmendro grande e praticamente toda a triponéscia que o cobria, nuns belos relevos florais, tinha saltado e já  não se encontrava na superfície do magnífico objeto em forma de sisitício.
_Olha para isto! _Raquel quase espumava._Estragaste tudo!_
Pelo canto do olho, Preciosa viu uma criança aí com os seus sete anos, um menino muito bem aprumadinho, vestido com fatinho azul de entona, com o nariz  colado ao vidro e rindo-se à gargalhada, enquanto batia com o dedo na montra apontando para o periquitete.
Foi a gota de água, a cereja no topo do bolo, quando Raquel seguiu com os seus olhos a direção do olhar da amiga e também  se deparou com a criança.
Após a fúria, Raquel teve um ataque ansiedade e tristeza, percebendo que nada, mas mesmo nada, poderia devolver-lhe em condições tão raras e preciosas peças, e começou  num enorme pranto. 
Quanto mais Raquel chorava, mais o miúdo se ria, e Preciosa não  sabia o que fazer, pelo que foi chamar o menino lá fora.
Sentou-o numa cadeirinha e puxou outra para si, pediu um café e um pastel de nata, e ficou ali sentada a vê-los nos seus variados estados de alma, até anoitecer.
No fundo do forro da sua velha mala, ainda hoje permanecem pedaços e migalhas de triponéscia dourada, embora Preciosa já tenha morrido.

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Ucrânias

As mães amam os seus filhos
muito antes de eles nascerem.

Como o tempo passa num 
breve instante para as mães, 
a inocência dos seus filhos perdura 
nos seus corpos sempre jovens.

Ainda ontem 
os observavam brincando no jardim, 
os viam com a #canalha nas ruas, 
ou entrando em casa
com uma bola suada nas mãos,
símbolo de paz em qualquer país.

Os loucos fazem as guerras.

Quando os loucos fazem as guerras, 
as mães veem partir para o inferno
a parte mais preciosa de si.

Quando são mães que rezam, 
rezam muito por eles, 
e quando são mães que não rezam, 
fazem-no igualmente e com igual fervor.

As mães permanecem até ao final da guerra,
rezando, 
estão em todos os lados e todas as frentes.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Apenas apontamentos roubados nos papéis.



Dia um
Desenhou crianças de dentes afiados no papel.

Dia dois
É tão difícil  uma língua de sapo não apanhar um mosquito,
de vez em quando.

Dia três.
Refugiou-se no amarelo e nas folhas que boiavam na água,
debaixo das pontes.

Dia quatro
Um homem encostado a uma árvore  dirigiu-lhe a palavra.

Dia cinco
A casa, 
construída numa pequena elevação de terreno.

(e por ali se estendiam os campos da primavera, 
ou o sol insuportável  do meio dia, 
ou a chuva davastadora dos temporais, 
ou o mar que nem via dali, de tão longe).

Dia seis
Pisou os torrões  de terra por entre as flores.

Dia sete
O homem palitava 
os dentes usando uma erva seca
ou era um pedúnculo de azeda, 
ou uma haste de trigo,
não sei.

Dia oito
A sua sombra, que se alongava até ao alpendre, era uma só.

Dia nove
Passeava-se
transportando a aura dos felizes.

Dia dez
Viajava sobre o fim do dia onde apenas via cores, 
não havia aborrecimentos nem mais nada.
Só a roupa leve e a brisa quente.

Dia onze
...








sábado, 19 de fevereiro de 2022

#Verbena

Um homem entrou no bar.
A sua figura imponente e o seu ar decidido fez com que a grande maioria das pessoas, sentadas às mesas, ou de pé junto ao balcão, parassem as conversas e olhassem para o indivíduo.
Ao passar levou tudo à sua frente dando um encontrão no empregado, que cambaleou, e derrubando uma cadeira devido à energia dos seus passos.
Quando o gerente, que ao momento se encontrava por ali, tomou a arrogância  de o interpelar, o homem parou diante dele, olhou-o fixamente nos olhos e, do alto do seu enorme corpo enigmático, sem dizer uma palavra, intimidou de tal forma o responsável  que ele saíu automaticamente do seu caminho.
Tendo alcançado o fundo do estabelecimento, o malfeitor deu um murro no tampo do balcão, e após este gesto, e por causa do silêncio  que antes já tinha imposto, puderam ouvir-se o ruído do vidro dos copos a tremelicar, o tinir dos cubos de gelo embatendo uns contra os outros, e duas moedas que tinham sido deixadas de gorjeta rolaram sobre a madeira e caíram no chão.
_Dê-me um chá de #verbena!_ ordenou.
O empregado que se encontrava atrás do balcão empalideceu e, aterrorizado, não  conseguiu responder.
_Um chá de verbena! Já!_ 
O rapaz, que ao momento  já  suava copiosamente, conseguiu balbuciar qualquer  coisa impercetível, o que deixou o malfeitor enlouquecido.
_Repete! Fala mais alto! 'Tás a ouvir?_
_Ch..ch..chá de verbena não temos_conseguiu gaguejar o rapaz, muito a custo.
_O quê?_ a vil criatura parecia cada vez mais enfurecida e do bolso do blusão sacou de uma pistola de carnaval.
_O quê?_ Voltou a perguntar espumando de raiva.
_Temos de frutos silvestres, ou camomila, se pretender. Também são muito bons. Não  fica mal servido_
O homem pareceu meditar durante alguns segundos, mas logo voltou à atitude anterior, reveladora da raiva que tinha pelo mundo.
_Experimente. Vai ver que não se arrepende._ O franzino empregado revelava-se agora uma pessoa de extrema bravura, conseguindo dialogar com o deliquente.
_Que garantias me dás?_
_Entramos num acordo. Se não gostar, não paga._
_A sério? Olha que fixe!_ e meteu ao outra vez ao bolso a arma com que ameaçava o público, para conseguir bater umas palminhas de contente.
Após este incidente, Manuel Estácio foi considerado o empregado do ano, por travar aquele episódio  de violência com a sua capacidade de persuasão e a sua coragem.







sábado, 12 de fevereiro de 2022

#Ovar

Andam por aí, 
com os cabelos 
inventados,
flores que o inverno
deixou para trás, 
com a sua habitual 
condescendência.
Ana após ano,
ele vê os pinheiros
de natal 
em pose altaneira,
num total 
deslumbramento
de criança,
enquanto o tempo
vai e vem, vertiginoso.
Andam por aí,
num total 
deslumbramento
de criança,
enquanto o tempo 
sobe e desce.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

JOTA

Hoje tive um sonho.
Foi um sonho incómodo e perturbador.
Nele,
eu tinha notado algo de uma tal beleza,
notável, 
que queria mostrá-lo a alguém,
uma só pessoa que fosse,
que pudesse ver o mesmo que eu.

Puxava os transeuntes nas ruas,
pelos casacos,
colocava-me à sua frente, para, 
com gestos agitados, 
prender a sua atenção,
porque,
por motivos que se prendem
apenas com os sonhos,
era incapaz de falar.

Todavia, 
todos me ignoravam, 
sacudiam-me dos seus caminhos,
mostravam-se aborrecidos,
desagradados, e eu,
sem jotas, ou vogais, ou outras frases,
sem a linguagem adequada para 
que me seguissem,
para verem o que tinha encontrado.

Era uma pérola, era uma pedra,
uma preciosidade de brilho e luz,
e eu, sem palavras possíveis
para lhes explicar.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Andam por aí,
Flores que o unverno injustamente deixou para trás,
Com os cabelos inventados de habituais condescendências
Oferecidas em concha feita de Dostoievski na palma das mãos.
Pelo menos um de cada um, 





Quando sentiu o intruso em sua casa ficou apavorado, mas em segundos buscou o seu lado racional para pensar numa solução. O mais silenciosamente possível percorreu o corredor até  à entrada de sua casa, agarrou no livro que andava a ler, e que pousara sobre o aparador, e dirigiu-se à sala de onde lhe parecera ter surgido o barulho. De facto, deparou-se com o ladrão que apressadamente enfiava os objetos que pretendia roubar dentro de um saco.
Sem pensar duas vezes, arremessou-lhe o Dostoievski  contra a cabeça, mas, felizmente, o homem foi a tempo de se baixar e barricar atrás da secretária.
O livro embateu contra a estante e foi estatelar-se no chão ficando dividido em dois pela lombada, sendo que o crime ficou todo de um lado e castigo todo do outro.
_ Não  me estou a sentir bem _ informou o desconhecido em fraca voz_ Dá-me licença  que abra a janela?_
_Permita-que seja eu a fazer isso_ e, solicito, abriu a janela de par em par. 
O malfeitor percebeu a oportunidade de fuga e rapidamente, saíu de trás do móvel, passou por ele empurrando-o, o que o fez desiquilibrar-se e cair para cima de um cadeirão azul onde permaneceu atordoado, e o homem fugiu com as pratas e outras valiosidades.






terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Esboços

Esboços

As nuvens taparam o esboço, 
e quantas nuvens 
teriam de ser necessárias para que,
tão densas e escuras,
fossem apagar uma certa luminosidade.

Ínfimas lâminas de nevoeiro
e os mesmos ruídos de fundo,
vírgulas douradas,
partículas de água 
que começam pelo fim.

Daí ser tão discreta
a transformação da chuva, 
..agora percebo...

Talvez aquela hora e meia
representasse umas oito horas
sobre nós.

Fitou, rente ao chão, 
uma ligeira vibração  nas flores azuis.
Viu o fumo espiralado, sem querer.

Lá estava ele,
um peixe luzidio,
ou um barco de piratas
que se desfaz.



(#ubuntu)












quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

O Home e a #Lanterna

Todas as palavras são simples.
Têm a naturalidade das palavras vãs.

São como os pássaros que 
atravessam as gaiolas pelas grades
confusos com a falsa liberdade 
da melodia dos seus cantos
audíveis até muito longe
conforme o alcance de cada um.

Mesmo o motor lá ao fundo,
ou o cão que ladra em eco pelos montes,
ou o comboio vermelho
que circula pelo espaço sem carris,
é tudo tão cheio de palavras simples.

E há um homem de barba igual
a todos os velhos de de barba,
que, teimosamente, as escreve,
olhando a paisagem pela esquadria da janela
vendo os barcos, parados, no porto.

A ele, basta-lhe abrir as vidraças e soprar, 
e eles navegarão carregados de palavras simples.

Mas tornará para o seu lugar,
sentado à secretária,
onde se deixará seduzir 
por essa simplicidade das palavras,
ou pelo simples tremeluzir das velas.