terça-feira, 29 de novembro de 2022

Só de olhar para a mulher uns segundos, percebeu que ela estava nervosa.
Mal abriu a porta de casa, deparou com ela com aqueles tiques que sempre lhe apareciam, involuntariamente, quando alguma coisa a preocupava. Levantava muito os ombros, fungava ruidosamente e batia com as mãos, ora nas têmporas, quatro vezes seguidas, ora nas ancas, três vezes, e seguia esta sequência até se acalmar um pouco.
Como sempre fazia, foi buscar um copo de água onde adicionou um pó calmante, constituído por flores de camomila e hortelã dos estábulos.
_O que tens, mulher, vejo que alguma coisa te incomoda. Toma. Bebe isto que te fará bem._
_Ai... Tu nem sabes... Pareceu-me ver um #frade debaixo do aparador da cozinha._ 
Maria da Ressuscitação, que, ao momento, se deixava relaxar um pouco, a hortelã dos estábulos tem esse efeito imediato de descompressão nervosa, pareceu ficar possuída outra vez. O medo alterava-lhe as feições, dava-lhe traços aparentados de lobisomem.
De facto, se se confirmasse a presença de frades dentro de casa, o problema era grave, até para Astúcio dos Santos, um homem corajoso e forte, que já  tinha combatido com extrema valentia em três guerras devastadoras, tinha trabalhado nas minas de S. Zinho, as mais perigosas do mundo, toda a sua vida era um exemplo de audácia e bravura.
Ainda nem fazia um ano, Astúcio dos Santos tinha feito uma "limpeza" pelos pinhais em redor, destruído todos os covis onde eles se escondiam, durante duas semanas limpou o terreno, vasculhou a casa toda, nem um ovo de frade encontrou, pensou, licitamente, ter-se livrado da praga.
Os frades, talvez seja bom explicar, são agressivos e feios. Evidentemente que a fealdade não deve ser condição para que coloquemos nenhuma criatura de Deus à parte, mas, porra, estes seres eram mesmo horrorosos e há limites para tudo nesta vida.
Independentemente disso, os frades, quando se alojavam em casa de alguém, roubavam comandos de televisão, comiam as comidas que estavam no frigorífico, roíam as pernas dos móveis e puxavam os fracos cabelos aos mais idosos das famílias.
Quando se cansavam de determinado lugar destruiam o que podiam antes de partir. Pior que tudo isto era a obrigatoriedade de ter durante a sua permanência, uma pessoa que se dispusesse a ser oferecida como sacrifício aos deuses deles, e nem sempre alguém  se disponibilizava, o que gerava grandes controvérsias e até conflitos que nem o melhor curso  de inteligência emocional conseguia ajudar a resolver.
Dito isto, pode entender-se, talvez, a aflição  de Ressuscitação e Astúcio ao verificarem ter voltado a praga, mais uma vez.
Mas o casal, habituado aos contratempos de uma vida de dificuldades, não se deu por vencido. Santos, pé ante pé, dirigiu-se à dispensa e de lá tirou um objeto, que Ressuscitação não conseguiu identificar, "Ha... Se eu fosse a minha irmã Maria do Raio X... Ela ia perceber logo o que foi este homem buscar à despensa", e continuou a seguir os movimentos do marido para tentar perceber que ideia lhe viera à cabeça.
Astúcio dos Santos dirigiu-se ao móvel onde a mulher disse ter avistado a criatura. Baixou-se, com muito cuidado para não  fazer barulho e lá estava ele, a dormir ferrado, com a dentadura do avô Rui Nôso presa numa das garras.
O mais silenciosamente que lhe foi possível, Astúcio agitou vigorosamente a embalagem que trazia consigo e vaporizou o frade bem no meio daquela cara horrenda, entre o focinho e a tromba. O animal contorceu-se muito, e quanto mais ele se contorcia mais Astúcio dos Santos o pulverizava, até ele estar com as patas viradas para cima, e largar a dentadura que tinha custado muito dinheiro, bastante acima das possibilidades desta gente necessitada.
Ressuscitação sentiu-se muito aliviada e contente, e como sempre fazia quando se sentia assim, fez três piruetas e dois mortais encarpados, repetidos por esta ordem até quase esgotar a sensação de felicidade.



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