segunda-feira, 30 de maio de 2022

Duas senhoras sentadas na relva de forma muito composta, conversavam sobre os filhos. Falavam de como eram amigos uns dos outros, na sua forma infantil de serem amigos.
João, que tinha por hábito observar os astros da janela do seu quarto, grandes como só na imaginação de uma criança  podem ser, vivos durante o dia limpo, resplandecentes pela presença de tanta luz, e tão próximos que mais pareciam saídos de uma ilustração, daquelas tão encantadoras que nem os olhos de um adulto resistem a tamanha suavidade, João passava horas nessa contemplação, a mãe contava como via aquela imagem estática do seu menino emoldurado pela janela, de costas para o quarto e para os brinquedos que por lá dormitavam à espera de brincar com ele, contava como não  o interrompia, ou se o fazia era apenas para lhe dar um beijo suave na têmpora e regressar rapidamente aos seus afazeres.
Roberta e Sebastião tinham outras formas, bem diversas, de se divertir, relatava a mulher loira, de costas muito direitas, enquanto depenicava uma bolacha que a outra lhe tinha oferecido.
Por vezes, caíam em queda livre,  até não se verem mais, sem medo, e depois descreviam-lhe o que tinham visto, na linguagem mais simples do mundo, igual à de todas as crianças pequenas, sem rodeios ou maus pensamentos, só a mera observação dos factos, tão límpida e honesta como só dois meninos podem ver.
Da primeira vez a senhora assustara-se horrores, achara que os perdera para sempre, mas quando regressaram, horas depois, e lhe falaram das gotas de água que caíam direitinhas ao seu lado, cada uma transportando a sua preciosidade, uma cobra enrolada, a bailarina de uma caixa de música, uma flor de #lótus de um azul muito azul, uma velhinha sentada numa cadeira branca, ou como tinham subido os primeiros degraus de uma escada que parecia não  levar a lugar algum, ou daquela gaiola tão grande, por onde se passava entre as grades, pelo menos eles, talvez uma pessoa maior não conseguisse, e de como, lá dentro, brincaram aos piratas com um urso de peluche, ou do caracol que subia a colina pintada de lápis de cor verde claro, com a chaminé  da sua casca lançando vapores de refeição cheirosa, ela nunca mais se preocupara com o assunto.
A tarde caía e as duas mulheres levantaram-se para regressar a casa. Uma delas puxou com delicadeza a manta que antes estendera para se sentarem. À medida que a dobrava, o cenário  parecia decompor-se. As cores misturaram-se, as coisas perderam a forma e foram engolidas pelo princípio da noite e pela sua escuridão, onde agora as estrelas eram muito maiores.



 

domingo, 29 de maio de 2022

Yoko

Lá vens tu, ó flor, 
pela atmosfera acima
ocupando espaço
nessa tua 
indolência 
enquanto na praia
uma rocha pode estar
em risco
de cair.

Tu que adoras o sol 
empenhado 
vês-te incapaz de evitar 
um dia 
escuro,
essa é a verdade.

A família acordou
vezes sem conta
enquanto a hera
ia comendo a casa 
lentamente.

Quanto a mim,
eu tinha quatro folhas 
em papel de prosa
mas a porta rangeu
por causa do efeito do
silêncio 
e o poema entrou em grande
velocidade 
com o seu ruído habitual.

O poema 
que era o projeto de 
atear o fogo
antes que morresse
lentamente,
ó tu, que adoras o sol.

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Entre a porta e a o chão
fica o espaço  razoável 
de uma falha 
com um centímetro de altura.
Por lá, 
entra o vento vindo da rua.

Se o vento vem da rua, 
traz com ele 
a agitação dos carros, 
o nervosismo dos transeuntes, 
ou alguma sombra esquiva
que viu desaparecer numa esquina.

Parece-me que...
entra o vento a toda a velocidade...

Então paro eu.
Dedico-me à observação 
do vagaroso crescimento das flores,
ao vôo da abelha,
que todos os dias, sem falta, 
vem buscar o seu quinhão de 
rosmaninho, 
todos os dias, sem falta...

Daqui,
vejo os automóveis 
que atravessam o rio, 
um rio que passa debaixo da estrada,
pela qual os automóveis circulam, 
nem sabem eles o que têm sob os pés,
sob as botas, sob o carro...

Sobre...
sobre um caudal de água 
que passa debaixo do asfalto.

Lá  vem a flor, 
vagueando pela atmosfera acima
ocupando o seu espaço indolente.

Ponho-me à escuta...
O vento parou.



terça-feira, 17 de maio de 2022

Zarpar

Não havia visitante que não se encantasse com a ilha de #Zarpar.
Por muito viajado que fosse, ou mesmo que a sua terra natal estivesse entre as mais belas do mundo, aquela ilha tinha algo de diferente, e de tão deslumbrante que eu própria, habituada a criar cenários imaginados, onde não há  limites para a beleza das coisas, me senti maravilhada.
Estávamos do lado das rochas alaranjadas e era por grandes buracos nelas existentes, todos perfeitamente circulares, que se observava a aldeia inclinada, de casinhas com tetos coloridos, incrustadas na falésia que parecia ter sido escavada para o efeito.
Um braço de mar brilhante separava-me do casario, e o sol, embora presente em todos os reflexos, apenas se adivinhava, não se deixando ver.
A humidade salgada entrava-me na pele, enquanto subia e descia, com os pés descalços as saliências dos rochedos, na ânsia de espreitar o encanto por todos os ângulos possíveis, por todos os enormes  olhos redondos que as pedras me ofereciam, em miradouros naturais causados pela erosão do mar.
Talvez fosse, não sei, um fim de dia, nas suas horas de ouro, ou um tempo inexistente. Em boa verdade e sem quaisquer mentiras, foi o que hoje sonhei.