domingo, 27 de outubro de 2019

#Fidelidade

Violeta visualizava
uma ideia
dentro de si,
nem via as árvores verdes
nem as aves voando.
Só de vez em quando
via o outono através
das folhas que jaziam
no chão.

(E mesmo as folhas
Violeta via-as porque
atravessava com os olhos
os vidros
da viatura enorme
que rodava com ela,
de cabeça  encostada
às voltas da estrada.)

Só contava os passos
que faltavam
para chegar a casa
quando
ia e vinha entre estações,
e via as gaivotas equilibradas
nos vãos das escadas
pássaros vadios,
vagabundos que viviam
a sua vida por ali.










sexta-feira, 25 de outubro de 2019

#Duplo

Januário foi dar milho aos pombos, e enquanto o fazia, sentado entre os dois pés da estátua, olhava de viés para para os lados, não fosse a políca aparecer do nada para o tirar dali.
Tinha visto o tapete da vizinha estendido sobre uma cadeira, achou-o horrívelmente feio. aborreceu-se com o padrão castanho, e esperou. Assim que  sentiu os saltos da mulher no mosaio, espreitou, viu-a a apalpar o entrançado para ver se já estava seco, e gritou-lhe do andar de cima, "esse tapete é horroroso, deixe-me que lhe diga!"
A mulher confirmou que também não gostava assim muito dele, encolheu os ombros aborrecida e meteu-se outra vez dentro de casa.
Januário, gostava daqueles animais esvoaçantes a remexerem-se em seu redor. arrolhavam pelo ar, enfiavam-no numa nuvem de asas, às vezes,
Quando o viam, começavam a aterrar ao pé dele, primeiro uns, depois outros, até serem imensos, e largarem uma ou outra pena dos seus corpos alados, e estas, por sua vez, também ficavam por ali a dançar.
Laura puxara de uma cadeira debaixo da mesa da cozinha, e ainda de pé, com a mão nas suas costas pesadas, de forro #duplo, pôs-se a pensar. "É feio, realmente", e recolocando a cadeira no sítio, decidida, deu meia volta para ir à rua  imediatamente comprar um mais bonito.
Quando dispersavam, deixavam o ar vazio, e assim, ali sentado, podia dar um sentido às coisas. como se a companhia dos pássaros não tivesse a mesma troca de palavras do que outra companhia qualquer, a mesma idiossincrassia de conversar com os movimentos do ar agitado pelas asas.
A proibição não lhe era suficiente, já pagara multas, já mudara de estátuas e  jardins, de sítios ermos, até o dia em que tinha de se ir embora para outro lugar.
Laura passou no passeio com um tapete enrolado num tubo e enganchado entre um dos braços e o tronco. Mesmo à sua frente, pousou o objeto longuilíneo no chão, encostando a parte superior ao muro, para tirar dos olhos um fio de teia de aranha que a vinha a incomodar, um daqueles que se suspendem em locais sem qualquer lógica, e que se prendem às pessoas que circulam.
Quando o viu, abandonou o objeto do outro lado da rua, atravessou o asfalto, de raros movimentos de automóveis, e dirigiu-se a ele para lhe dizer que já tinha comprado outro, estava ali encostado, de cores vivas e brilhantes, pronto para alegrar o ambiente da sua casa.
Ao sentirem-na tão próximo, as aves debandaram dali, para irem pousar bem longe e Januário seguiu-as sem sequer responder à mulher.






quarta-feira, 16 de outubro de 2019

INão tenho pressa nenhuma de acabar isto. Vamos com calma

Não foi com grande vontade mas preparei-me com apetrechos  para a chuva e saí de casa resignada.
Se é assim tão necessário levar a chave, eu levo a chave à senhora, pronto, irei.
Na rua, já não chovia, mas a água tinha-se acumulado por todas as reentrâncias, buracos e zonas côncavas, instalei-me fora de uma poça e fiquei atenta à passagem de um táxi sem passageiros.
Nem dois segundos se passaram, e alguém faz uma travagem brusca ao pé de mim, nem percebi de onde veio, um automóvel pára, deslizando duas das rodas sobre água à minha frente, molhando-me, o condutor abriu a janela do meu lado, tirou o cinto de segurança e esticou-se todo sobre o banco do pendura para falar comigo.
_Para onde quer ir, senhora?_
_Bairro do Fogo. Vou entrar pelo outro lado porque aqui há uma grande poça de água._
-Não vai não senhora, entre por aí, é proíbido entrar pelo outro lado,_ Mas eu fingi não ouvir, dei a volta ao carro, sentei-me no banco de trás e acomodei-me.
_Bairro do Fogo. Mesmo na praça principal, sff ._
O homem resmungou qualquer coisa impercetível e avançou por entre o tráfego. Passou a grande avenida, virou à direita, contornou três quarteirões inclinados e chegou ao topo da cidade. Vai daí, apontei-lhe com o dedo.
-_Ali, vê aquele clarão alaranjado?_
O taxista torceu o pescoço para traz olhou para mim como pôde devido à posição em que se encontrava. Mostrou-se enervado
_Acha que eu não sei onde é o bairro do Fogo? Não tenho categoria, querem lá ver! Ainda ontem cá passei, Pois fique sabendo que tenho cá família!_
-Nada disso. Eu própria só venho cá entregar uma chave.-
_Ah!_ Pareceu ficar mais tranquilo._Onde deseja ficar?_
_Mesmo no largo._
O táxi contornou uma ruela e. assim que o fez, o cenário abriu-se revelando uma praça de tons alaranjados. Nada fazia destoar esses tons que, diziam, tinham a ver com as montanhas em frente, que se erguiam rugosas e sem vegetação, como duas enormes amêndoas recortadas no horizonte.
O automóvel parou junto a um passeio e eu saí de lá de dentro, depois de pagar a corrida com o meu cartão de crédito.
_Até logo!_ despediu-se o bizarro motorista. _Estarei aqui para a levar de novo, no regresso, assim que estiver despachada._ E arrancou a alta velocidade.
Na praça, várias pessoas passeavam, conversando umas com as outras. Todos os homens vestiam de negro, e as mulheres tinham roupas caras e bonitas, muito coloridas, mas todas de tons alaranjados ou castanhos, ou amarelos, uma ou outra peça encarnada, mas não se viam azuis, ou verdes, ou qualquer outra cor que quebrasse o aspeto terroso e abafado do ambiente.
Dirigi-me a duas senhoras que por ali passeavam.
_ Por favor, sabem dizer-me onde fica a rua da Empatia?_
Sorriram uma para a outra, com ares de cumplicidade.
_Ali ao fundo, na esquina da esplanada. Sempre em frente.Vem entregar a chave, não é? Boa sorte!_
agradeci e segui o meu caminho, sem entender muito bem o que se tinha passado. Contornei as mesas da esplanada e, passados alguns metros, cheguei ao meu destino. Número doze. Toquei à campaínha.
Um empregado, impecavelmente vestido de negro, abriu-me a porta.
_Vem por causa da chave, não é? Tenha a bondade de me acompanhar._
Segui-o pelo corredor, um pouco perturbada por todos revelarem saber o motivo da minha ida ali.
No topo do corredor existia uma grande e pesada porta de madeira, que chiou quando o homem carregou num botão do comando e ela se abriu.
Entrei e a porta fechou-se atrás de mim.
_Trouxeste a chave?_ Junto a uma enorme janela de cortinas bordeaux, completamente corridas, estava uma velha senhora de baixa estatura e rechonchuda, sentada numa cadeira que quase parecia um trono. Fazia malabarismos com quatro pequenas laranjas que atirava ao ar com grande perícia.
_A chave. Dá cá. Atira-a daí, que eu apanho_
_Mas..._
_Vá, despacha-te, que eu não tenho o dia todo._
Assim fiz, e ela, com a maior desenvoltura, apanhou-a no ar e adicionou-a ao seu número de circo, sem nunca se atrapalhar ou deixar cair algum dos objetos com que brincava.
_Podes regressar à tua vidinha._
_Foi um prazer._
_Vai, vai, vai..._
A grande porta abriu-se, e eu saí, seguindo o corredor em sentido contrário, que desta vez se encontrava deserto. Finalmente na rua, voltei à praça de terra batida, onde as pessoas continuavam a passear com #tranquilidade.
As senhoras com quem antes tinha falado ainda por ali andavam circulando nos seus fatinhos de saia e casaco de tons creme e cor de mel, e as suas joías douradas, brincos, pulseiras e colares.
_Por favor, a praça de táxis, onde é?_
_Não há._Riam-se uma para a outra, como se eu tivesse acabado de pronunciar uma boa piada.
Nesse momento, um automóvel pára, mesmo em frente a mim.
_Táxi?_
O motorista que me levara umas horas antes, fazia-me um largo sorriso e abria-me a porta para eu entrar.
_Por esse lado, não. É proibido. Entre por este, se faz favor._
Entretanto, a chuva recomeçou.




quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Lídia

Lídia teve dois filhos.
Tinham nascido fruto de uma tarde em que o rapaz a acompanhou a casa subindo a colina com ela, depois de um encontro ocasional na vila, dentro de um #elevador.
Contou-lhe o rapaz, pelo caminho, que vinha de uma cidade muito para sul, onde os galos ainda cantam pela manhã, e as nuvens são muito rápidas a percorrer o horizonte.  Tão rápidas que é difícil acompanhar o seu trajeto através de um simples olhar.
Ficou tão encantada que, nessa tarde, acabou por sujar a fronha da almofada com laivos do seu baton preferido, e teve de a lavar, esfregando bem, enquanto Raul partia para a cidade dos seus dias vulgares.
Lembrava-se muito bem daquela situação especial e indefinida.
As crianças idênticas, nasceram com um intervalo de minutos, e por vias sinuosas do destino impenetrável, passaram a ser completamente suas.
Nunca precisou da ajuda de ninguém para as criar.
Quando  era necessário ausentar-se, deixava-as debaixo da grande árvore que tomava conta delas irreprensívelmente. Nos dias de chuva, espalmava as suas folhas e sobrepunha-as geometricamente para formar sobre os meninos um enorme guarda chuva. Se fazia vento, dobrava impercetivelmente o tronco para lhe ser possível aconchegar-lhes as mantas com a ponta de um dos galhos mais antigos, muito  próximos do chão.
Isto porque sabia exatamente, com a consciência que têm as árvores, quando a brisa podia perder a sua suavidade e passar a constituir um perigo, podendo provocar a doença  num dos bebés.
O trabalho era executado de forma tão extremosa, que Lídia muitas vezes se sentava nos degraus da entrada, só para a ver, atuando silenciosamente.
Quando os filhos se tornaram homens, a árvore adoeceu. Começou por encarquilhar as folhas, que perderam todo o vigor, até deixarem de romper nas Primaveras.
Depois foi o tronco que secou.
Então, a árvore começou a inclinar-se perigosamente sobre a casa, pressionando com o seu peso o telhado de telhas-vãs, e Lídia mandou que a cortassem, rente à terra barrenta do quintal.














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domingo, 15 de setembro de 2019

#Puxavante



Pensei,
quando ouvi esta palavra:

Não vou ser ignorante
e de agora em diante,
portanto doravante,
é assim que vou falar,
que isto, sem sementes
não vale a pena a lavra.


Mas um dia,
estava eu em Alicante,
ou na Festa do Avante,
já nem me estou a lembrar,
pedi à senhora, num bar,
que me desse um #puxavante
e ela olhou para mim
com cara de parva.


O #Quartzo Brilhante

O  tapete verde
decidiu azular
a parede cinzenta.

Quando as árvores espreitam
coisa que nem sempre acontece,
comigo,
as suas folhas são tão nítidas,
demasiado nítidas para que
essa nitidez seja causada
apenas por causa da
incidência do sol, a esta hora
...talvez, também, tenha a ver
a com elegância das suas
silhuetas, não sei...

Alguém rega as flores.
Ouço o jacto de água a
bater na terra,
fino e desligável.
Distraí-me da maldita cor
que muda em
função das circunstâncias,
por exemplo,
quando o dia está
escuro e triste,
a parede quase não se vê,
é como se não existisse,
nem ela,
nem nada do outro lado.

Quando vem a chuva que
lava as coisas de fora
por dentro,
os seus riscos oblíquos
refletem na superfície vertical,
e é engraçado de ver.
e eu sento-me a observar.

Devido à inesperada
circunstância
de haver, naquele momento,
uma praia
no fundo da cor mortiça
e silêncio, tão propício
à tranquilidade,
acabo por adormecer,
sonhando o inconcebível.

Sonho que me afasto da margem
por vontade própria, de forma
consciente e natural.

Em escassos minutos
percorro tantos espaços
de mar,
nado em linhas direitas
que se intercetam e
que são
espantosamente reais.
Julgo, então, ter escamas
e barbatanas
distribuídas em
simetria pela corrente
sanguínea
como acontece no corpo
frio e
longuilíneo dos peixes.

Vou ondulando sem sentir
 a mais pequena ponta
de cansaço,
até que as minhas braçadas
se tornam apenas
regulares  e previsíveis
batidas de coração.
e do azul cintilante
retiro o oxigénio
necessário para respirar.








sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Greta

Em relação a Greta_Thunberg, confesso que, independentemente do conteúdo, com o qual ninguém com dois dedos de testa pode discurdar, e da própria miúda, que só louvo, vários pontos dentro desta envolvência me poem a pensar.
Em primeiro lugar, não consigo deixar de olhar para ela sem lhe ver qualquer coisa de mártir, e eu, na minha condição e hábito de protetora de crianças e jovens mulheres, não apoiarei em local nenhum do mundo uma criança mártir.
Dir-me-ão que não, mas eu sempre a vejo com enormes olheiras e um semblante carregado e sofredor.
Em segundo lugar, pergunto-me muitas vezes até onde vai o nosso, querendo referir-me ao  universo daqueles que se preocupam, o nosso cuidado com a pegada ecológica.
Deixámos de usar telemóvel? Todos? Ou nem um deixou, sabendo o que isso significa?
E quantos exemplos poderei aqui colocar que demonstram que só temos preocupações  ecológicas até onde a nossa vidinha não sair prejudicada.
Em terceiro lugar, incomoda-me imenso, quero recusar-me, até, a viver com os remorsos que a toda a hora nos tentam incutir como se tivessemos falta de consciência.
Somos induzidos, obrigados muitas vezes, ao consumo, onde se escondem verdadeiros atentados ao planeta, e depois, porque vivemos de acordo com aquilo que existe, somos acusados, perversamente na minha opinão, de males que não provocamos, antes nos são oferecidos, e que vêm agarrados ao poder económico, ou ao capitalismo, se quiserem, como lapas.
Para terminar, e voltando a Greta, claro que só tenho a agradecer-lhe entregar a sua juventude a tão nobre causa.





domingo, 18 de agosto de 2019

#Postal_de_férias Sem Forma de Um

De vez em quando
por causa de uma palavra
que nem é nada
mas que ecoa por aí,
enquanto arrumamos
meia dúzia de merdas,
de vez em quando,
ia dizendo,
escrevêmos algumas
palavras que julgamos
guardar por aí
em papeís.



Mais tarde,
ao observarmos
os buracos dos cortinados
a embatem sob a forma
de luz, na parede
em frente,
lembramos, finalmente,
o momento em que,
os largámos, um dia
sobre um monte de jornais.

Mas, talvez por causa
do muito tempo,
que  passou,
não sei,
os "emes" perderam as ondas,
que lhes são habituais,
todas as vogais estão, agora,
iguais,
e a letra escorre sem sentido
como nas fontes
em que a água
cai num fio
formando ilegíveis aneís.






domingo, 4 de agosto de 2019

Composição

O gato preto dormia empoleirado numa caixa de cartão. O sol não o atingia, antes os seus raios passavam sobre o dorso esticado do animal que dormia deitado em equilíbrio, na sua parte lateral.
que já nem espantava que tivesse esticado o corpo para caber tão bem, em equilíbrio.
Tirou os óculos para limpar as lentes, pela milionésima vez.
Os automóveis ouviam-se passar.
Vrumm... Aproximavam-se rapidamente e depois o ruído esmorecia, até deixarem completamente de se ouvir. Depois vinham outros e outros.



O maldito não se deixa apanhar.
Há anos que se mantém definido nas folhas,  mas quando tento fotografá-lo, esfuma-se como o diabo,
não se revela nas imagens que captei.
Todavia está ali, com as barbas ondulando e os grandes olhos transparentes, ou inexisentes, ainda não entendi, que me permitem  olhar  o outro lado da rua através das suas órbitas vazias.
Vejo-lhe a popa formada pelo  cabelo verde, agora, em tempos de chuva silenciosa e novos rebentos, mas no inverno mantém o penteado tal e qual, apenas lhe mudam os tons das madeixas para castanho.
Nunca me falou em nada de extraordinário. Nada de muito bonito ou muito feio, nem fala grande coisa o monstro da árvore, só está ali acompanhando a minha existência, murmurando ao sabor do vento com o seu perfil ondulante.
Se esse vento é forte, e às vezes é tão forte que derruba coisas, nem por isso se desmancha,
apenas  dança com movimentos mais intensos do que o habitual.
O corpo em que se alojou, um grande tronco de árvore velha, parece não lhe interessar, quase paira sobre ele, enquanto me vai avisando com a cadência do tempo a passar:
"Eu venho doutro universo e só tu me vês, só tu me vês, só tu me vês..."


terça-feira, 30 de julho de 2019

Em dia de #Woodstock

Sentou-se no chão, no canto do costume. O tremendo cheiro que exalava, batia de encontro às pessoas que passavam na rua e, como um bomerangue, regressava em odores  de perfume. e aí sim, utilizava o seu terceiro ou quarto sentido, quando ele era prestimoso e agradável.
Tinha sempre o cuidado de não esticar as pernas para não fazer cair ninguém, e por isso as encolhia muito, passando os braços em volta delas, e apoiando a cabeça nos joelhos.
Ficava horas assim. Por vezes espreitava o boné virado ao contrário, e colocado do seu lado esquerdo, principalmente se ouvia o ruído inconfundível  das moedas de cinquenta cêntimos. Espreitava para confirmar, embora soubesse muito bem que era uma daquelas grandes moedas, conhecia-as todas pelo som.
Um dia passou por ali alguém maior do que a caridade a que estava habituado. Esse alguém reparou na sua mão direita, com o dedo anelar apodrecendo de volta da velha aliança, o anel que era testemunho de um tempo que já não existia, e que agora era apenas um foco de infeção.
Quando o corajoso transeunte se aproximou para lhe falar, não respondeu, não estava para aí virado. Concentrava-se no aroma de um caro perfume de mulher que lhe tinha chegado às narinas. Conhecia os aromas todos dos perfumes das mulheres que subiam e desciam a avenida, ouvia os seus saltos sincopados no passeio, entretinha-se a contar os passos de cada um, a adivinhar que tipo de sapatos usavam, de vez em quando levantava a cabeça para saber se tinha acertado, e depois voltava a metê-la entre os joelhos.
O homem insistia em levá-lo para ser tratado, mas ele, mais uma vez, não lhe respondeu. Levantou-se e seguiu mais uma curta viagem. Cismava já num outro local para se sentar onde, durante uns tempos, pelo menos, o deixassem em paz.

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Queixume

Ainda nem os galos tinham começado a cantar anunciando a manhã, já Viriato da Silva estava prontinho para sair de casa. Andava há dias a preparar a mala para umas merecidas férias na praia fuvial de Vila Nova do Ai Jesus, local aconselhado pelos seus colegas de trabalho, que lhe afiançaram ser uma terrinha tranquila com recantos paradisíacos, junto ao rio, e com a vantagem de ainda poder dar uns mergulhos.
Tinham-no avisado de um único senão, o facto de, durante a noite, se ouvirem uns #queixumes, umas lamúrias cuja origem ninguém conseguia entender, nem habitantes, nem turistas, nem tão pouco as autoridades locais, muito embora já tivessem esmiuçado as margens do curso da água e as suas zonas limitrofes.
A verdade é que, para além do som desagradável e um pouco assustador, não acontecia nada, portanto, acabaram por abandonar as buscas e todos viviam felizes sem sofrer quaiquer consequências desse som horripilante.
Após duas horas de viagem, Viriato chegou ao seu destino. Estacionou o automóvel à entrada do pequeno hotel, tirou as malas da bagageira e dirigiu-se à rececionista que lhe entregou a chave do quarto.
Os seus aposentos ficavam no terceiro andar e tinham uma bela vista para os montes em frente, com o rio mesmo ali perto, com grandes salgueiros debruçados sobre ele e ainda um moinho de água desativado, que compunha o ambiente bucólico tornando-o numa bela e viva pintura.
Depois de um dia bem passado, mas acusando a exaustão de muitos meses seguidos de trabalho árduo e, também, do cansaço da viagem, Viriato da Silva comeu uma refeição leve e foi descansar.
Assim que se esticou em cima da cama, começou a ouvir um choro acompanhado de uns lamentos tão tristes que não conseguiu evitar sentir uma enorme angústia e desatou num choro compulsivo.
O seu desespero foi tão grande, que se atirou da janela o que o fez partir um perna e deslocar um ombro, pelo que foram chamados os bombeiros e o levaram para o hospital de Viseu, que era o mais próximo, e onde passou o resto das suas férias.

terça-feira, 16 de julho de 2019

O tempo

O #jornaleiro vai morrer, os livros vão morrer, com o tempo,
e com o tempo, o papel será fabricado apenas para embalagens
ou para substituir o plástico,
até uma nova promoção do plástico desta vez para salvar as florestas,
as que arderam, com o tempo,
aonde biliões de letras impressas também acabaram por morrer. e nunca mais ninguém as leu.
Ao momento, já podemos ver os nossos rostos,  velhos, muito velhos,
basta fotografarem-nos, usar uma aplicação que serve para o efeito, e eis que surge o futuro imaginado,
de um tempo anterior ao das cinzas a voarem sobre o mar,
que serão, um dia, lançadas das falésias.
Fica então o testemunho, num canto de um jornal sem importância, amarelado pelo tempo,
e utilizado para envolver serviços de chá, para que não se partissem com o tempo.
E sujas. Tão sujas e velhas, essas folhas, que nem se devem separar, como nos ensinaram, com o tempo, para não comprometerem a reciclagem.
E a louça antiga também irá para o lixo, por ser um logro que, afinal, não possui qualquer valor.

domingo, 14 de julho de 2019

Heroína (Iniciado a 14/07/2019 e acabado hoje, para Transgressão


O vício poderoso dominava-o até à total irresponsabilização dos seus atos. Já nem era, nem se sentia ele, embora fosse dele que nascia essa vontade irreprimível.
Olhou para mim com os seus olhos vítrios e iridescentes, de pupilas enormes. por onde não se perscruta nada porque é impossível atravessar aquela terrível barreira magnética que não permite que espreitemos lá para dentro, o que inevitavelmente afasta as pessoas, ao invés de as aproximar.
Andava como louco, em passo apressado, víamos a sua roupa movendo como se não estivesse ninguém lá dentro.

O homem vinha direito a mim, rua acima, os passos resolutos das suas calças sem ninguém lá dentro, não me deixaram dúvidas. Pareceu-lhe que eu tinha bom ar, e alguns trocos na carteira, talvez tenha sido  isso o que o fez aproximar-se
Enquanto olhava para mim, com os seus olhos vítreos e iridescentes, onde se não espreita por ser impossível atravessar aquela barreira magnética que, neste caso, afasta as pessoas em vez de as aproximar,

Talvez porque lhe pareceu que eu tinha uns trocos na carteira, e aspeto de quem lhe daria umas moedas, aproximou-se e olhou-me com os seus olhos magnéticos, cujas pupilas...

Um vício poderoso domina-o
até à total irresponsabilização.
Dirige-se a mim, resoluto
As suas pupilas aumentadas e magnéticas
não permitem intrusões,
e então não consigo espreitar lá para dentro.
Nada, não vejo rigorosamente nada,
É a minha roupa sem corpo que
anda pelas ruas.

Dirijo-me às pessoas na rua, resoluto, e com as minhas roupas sem corpo, subo e desco as as ruas.
Um vício poderoso me domina até à total irresponsabilização de quaisquer atos. Nem as pessoas me espreitam, como gostariam, e isso aborrece-as de morte, porque são intransponíveis as minhas pupilas aumentadas e magnéticas.
o que os afasta-os ao invés de os aproximar, e ainda bem, porque não sou eu,
nem sou eu, O Homem.

sexta-feira, 12 de julho de 2019

#Festa_dos_Tabuleiros

Ainda não era dia quando Firmino Costa se levantou.
Foi à casa de banho despejar a bexiga e voltou a deitar-se.
Naquele sono leve da manhã, sonhou que alguém lhe arrancava o pé direito  o que lhe provocava dores atrozes, e é claro que, ao acordar, percebeu que tinha esse pé entalado entre a cama e a parede, e, com as voltas agitadas e inquietas que se viu obrigado a dar enquanto estava inconsciente, já o tornozelo tinha revirado em hélice, não sei quantas vezes, tal e qual como nos desenhos animados.
A mulher, que andava na lida desde cedo, chegou-se à porta do quarto e gritou baixinho três vezes, se é que é possível gritar baixinho, eu acho que sim, "Festa_das_flores! Festa_das_flores! Festa_das_flores!", como era seu hábito desde que tinham casado, num belo outono de prata, todos os dias bradava aquilo, uma vez à noite e outra vez pela manhã.
As crianças viam TV, com os seus biberões agarrados pelas duas mãos. Bebiam sofregamente, como fazem os bebés, pelo menos os filhos de Firmino assim faziam.
Ao espreitarem pelo canto do olho, viram o pai a coxear, a preocupação transmitiu-se ao líquido que ingeriam e cuja cor alterou completamente.  O que era branco passou a verde, e uns segundos depois amarelou. até o preto intragável se instalar em definitivo.
A vizinha bateu à porta, falaram todos um pouco, depois Firmino foi apanhar lenha em plena cidade. Não encontrou mais do que uns galhos imprestáveis, e voltou para casa aborrecido, nunca havia nada de aproveitável naqueles passeios debaixo das árvores.
Com tudo isto, fez-se tarde. Já a lua uivava pela noite dentro à procura dos meninos para os comer muito vivos, se é que posso dizer isto, porque, em boa verdade, ou se está, de facto, vivo, ou, de facto, se não está.

sexta-feira, 5 de julho de 2019

#Drácula






A chuva intensa arrastou
consigo as vírgulas,
que ficaram caídas entre
as palavras
como barcos de papel
baloiçando na água ondulada.

Após o vento começar a soprar
e ele ter adormecido,
na cadeira ao fundo
do quintal,
sonhou que corria atrás das folhas,
porque não o largariam,
as folhas soltas,
ano após ano
entristecendo o seu corpo imortal?

A grande portada guinchava
e batia
com a corrente de ar,
e foi quando os pássaros teimaram
em iniciar
o regresso às suas casas.

Mesmo os que ficaram
abrigaram-se debaixo das telhas,
fechando os olhos,
e aceitando a solidão como o tempo
necessário,
até ao regresso do sol.




sexta-feira, 28 de junho de 2019

Stonewall

O único incidente desagradável do dia foi quando, no anfiteatro, me levantei ligeiramente da cadeira, para dar passagem ao dr Fausto, que tinha chegado atrasado, os pés me escorregaram, e, sem querer, rasteirei-o. o que o fez desiquilibrar-se e caír desamparado no meu colo. De resto, foi tudo muito agradável, e também muito interessante e produtivo.
Os oradores eram figursas conceituadas, e não houve, com toda a certeza quem não tivesse aprendido qualquer coisa, o mínimo que fosse, sobre "Como Falar De Forma Incompreensível, Exaustiva,e Tremendamente Chata"?
Gosto de ir aos congressos. Sobretudo da parte das bolachinhas e do café, que se misturam com as conversas agradáveis com os meus pares.
A Magda expôs o seu trabalho, fruto de dois anos de pesquisa, sobre o "Dissentir do Corolário", insistindo na noção de "Estratégias Capsiosas, uma linha de pensamento muito em voga neste universo apaixonante e complexo que é o de fazer chegar ao mundo as diversas formas incompreensíveis de comunicar
Os conceitos de "Kill Bill" e "#Stonewall "também foram focados, e Alcatra, a coleguinha loura do Gabinete de Hermenêuticas e Outras Coisas focou o assunto tremendamente bem.  Tive ocasião de lho dizer, no intervalo das onze e trinta,por altura do segundo pastel de nata.  Ela corou ligeiramente enquanto nas suas narinas apareceram dois macaquinhos que me vieram dizer adeus.
Vou reter essa afável imagem durante uns tempos na minha mente.

domingo, 23 de junho de 2019

Véspera de #Noite_Junina


O grande pássaro encantado esperava por ele no jardim,
enquanto se entretinha a debicar alguns
insetos que passavam entre as ervas.

A criança desceu agilmente a escadaria,
abriu a porta, correu uns passos,
e saltou com destreza para o dorso do animal.

Não comunicaram, não foi necessário,
porque ambos sabiam o que tinham a fazer.

O pássaro gigante iniciou o seu vôo inclinando-se,
perigosamente, em direção às nuvens,
para ganhar altitude,
e ele abraçou o seu pescoço com muita força, para não cair.

Atravessaram a chuva até ela sucumbir no fundo
dos seus corpos,
e voaram sobre as aldeias  minúsculas,
enquanto o movimento compassado
das grandes asas, ia cortando o céu azul.





sexta-feira, 21 de junho de 2019

cjcjcj

Havia fortes motivos para que se considerasse aquela casa bastante sinistra.
Não só o aspeto do edifício, decrépito, com um jardim em volta, abandonado às ervas daninhas, como, principalmente pela família que nela habitava, de hábitos e fisionomia duvidosos, e que tinham o condão de deixar os outros habitantes, senão amedrontados, pelo menos bastante apreensivos.
Por isso não é de admirar que o carteiro, que tinha de se aproximar, devido às inerências da profissão, tivesse um certo receio de o fazer.
Quando, naquele dia, Silvino Selo se apercebeu que tinha de tocar à campaínha da inóspita casa e falar com uma das estranhas criaturas, ficou apavorado.
Chegou-se à porta, tocou rapidamente no botão, e fugiu, escondendo-se atrás de uma árvore.
A porta abriu-se, lentamente, e ele pôde vislumbrar os contornos de uma figura horrenda, de cabelos desgrenhados e pele escamosa, vestida com os andrajos mais repelentes que ele alguma vez tivera oportunidade de ver.
Não estando ninguém à soleira da porta, o monstro deu um passo em frente, para espreitar melhor fora de casa, e, mirando concentrado, o terreno que o rodeava, percebeu a presença de Silvino.
Então, da sua boca fedorenta saíram sonoras gargalhadas maldosas, que ecoaram por toda a aldeia, e vários outros membros do clã surgiram do nada, andando como mortos vivos na direçao do pobre rapaz.
Do outro lado do lugarejo, o tio Armindo, um homem respeitado por aquelas bandas, estendia a roupa à mulher, num gesto de boa vontade que tinha de vez em quando.
Ao ouvir as risadas tenebrosas, largou tudo e dirigiu-se à barraca das ferramentas onde Ernesta estava a afiar os dentes. Tinha que ser rápido, porque a mulher era alérgica a gargalhadas maléficas e podia sufocar rapidamente.
Começava por sentir a garganta a arder, como se tivesse #lume no pescoço, e havia que atuar com a maior celeridade possível.
Silvino Selo, nesse momento, passava sérias dificuldades. A família monstrusoa perseguia-o pela rua abaixo, enquanto gritava cânticos de guerra.
Felizmente que o portão dos Abreus estava aberto, o que lhe permitiu esconder-se atrás de uma outra árvore, já dentro do quintal particular, e despistar as terríveis criaturas, que acabaram por regressar, frustradas, ao seu antro.
Nesse dia o carteiro jantou com o casal, que conseguiu, facilmente,  convencê-lo a voltar a estudar e ingressar na faculdade.











domingo, 16 de junho de 2019

Antero Senisga estava sentado no muro, a olhar o rio grande e luminoso, quando uma #gaivota veio pousar junto a ele.
De iníco nem reparou, gaivotas e pombas eram tão vulgares por ali, que era comum estarem tão próximo de si.
Acontece que ouviu alguém pedir-lhe um cigarro e ele estava ali completamente sózinho, no que a humanos diz respeito, e, mais assutador ainda, parecera-lhe que o som vinha do lado do animal.
Pensando ter-se enganado, voltou a distrair-se com a paisagem fenomonal que tinha em frente, o rio tão largo e brilhante que mal se via a margem do outro lado, mas,

Lisboa, (ou a #Hecatombe de já ter passado o dia da #gaivota)


A rua mantém
a sua inclinação perigosa,
o chão molhado,
e irregular.

Toda a noite ouvi a chuva
a bater na janela.

Quando viro a esquina,
sei
que não está ninguém
àquela hora,
só as aves numerosas,
que habitualmente
se apoderam dos largos
vazios

Manhãs de domingo.
os pássaros sobem
e descem no ar,
comigo,
até pousarem
nas pedras lisas,
eu sento-me num banco,
e eles dispersam
pela enorme praça,
ou repousam nos braços
da grande figura
de bronze

Daqui, deste lugar,
vejo a luz que rompe
as nuvens espessas,
as gaivotas
que bebem água nas
poças,
e a cidade brilhante
a acordar.






domingo, 9 de junho de 2019

zzzz



O acontecimento foi de tamanha importância, que todos concordaram em que devia fazer parte dos manuais de história.
Numa remota aldeia, lá para os lados de coisa nenhuma, mesmo no limite do território do reino, onde ele acabava e começavam as rochas que davam para o oceano, vivia um jovem casal esperando o seu primeiro filho.
 Ana Verme e Dário Nojento  sentiam-se a viver a maior de todas as felicidades.
Enquanto ele ia rachar lenha para o mato, que se estendia atrás da casa, ou pescar para as falésias, ela ficava a apanhar bolota para o pão do jantar. nos terrenos mais próximos.
Quando ele chegasse, fariam uma grande fogueira, amassariam o pão juntos, e cantarolariam alegremente.
O tempo foi passando, a barriga de Ana foi crescendo, até chegar o dia milagroso em a criança nasceu, uma linda menina, tão rechonchuda e delicada que tiveram dificuldade em escolher um nome próprio que fizesse juz a  tanta doçura.
A tia Graça #Zandinga tinha morrido há pouco tempo. Conhecida nas redondezas pela sua bondade extrema, e pelas suas capacidades de adivinhação, Ana e Dário entenderam que era justo homenageá-la dando à criança o nome da velha tia.
E assim,  Gracinha de Verme Nojento cresceu rodeada de amor e tranquilidade,
Nem ele própria, nem os outros,  se aperceberam de que ela tinha poderes extraordinários, e apesar de lhe sucederem algumas anormalidades, tais como, espirrar e fazer cair os bibelots da sala, ou pôr o automóvel do pai a fazer marcha atrás, até ele ir de encontro às árvores, só com o poder da mente, fora esses detalhes, também Gracinha vivia na ignorância em relação às suas reais capacidades.
Foi num fatídico jantar de natal, quando desejou muito que saíssem lesmas dos olhos do irmão, depois de ele lhe dar um pontapé propositado, e viu a mesa cheia delas fugindo do ponto de embate, vagarosamente pela toalha, que percebeu tudo.
Juntou as mãos no peito, agradecida,  e olhou para o céu, de onde a tia Graça, sorridente, lhe dizia um último adeus.









sexta-feira, 7 de junho de 2019

Depois de #Yourcenar

O Jacinto perdeu o apetite.
O outro tinha saído pelo tempo das orquídeas em flor,
que assim ficaram, resistindo durante um mês, mais dia, menos dia, tranquilizando
transitoriamente a casa com as suas cores suaves e perfeitas.
Depois as flores  começaram a secar, mirraram, uma por uma,
e  caíram sobre a superfície das coisas, para cima do micro ondas,
sobre as  prateleiras e sobre o chão, e assim se mantiveram durante muito tempo,
até  o corpo do  Jacinto começar a dançar dentro da roupa, como se ela pertencesse
a uma pessoa muito maior do que ele.
Quando chegava do trabalho, sentava-se no lugar que tinha abandonado antes de saír,
nem se dera ao luxo de deixar a cadeira alinhada e encostada à mesa, sentava-se a olhar, alternadamente para tudo, até para os seus próprios cotovelos, que apoiavam os braços onde repousava a cabeça que segurava entre as mãos.
Observava as pétalas a enrolarem-se dentro dos novelos de cotão que saíam dos cantos, e via a poeira a vibrar, ligeira, com a aragem que a janela provocava e depois tudo, tudo, rolava rapidamente, quase suspenso, conforme se levantasse mais ou menos brisa lá fora,  no espaço exterior.
Os copos sujos mantinham-se quietos, nos dias sem movimento, ao pé dos outros desmazelos.
Ainda havia os comprimidos  que o médico lhe havia receitado,  específicos para as correntes  de ar triste que se tinham formado no seu peito vazio.
Quando o outro saíra. levara com ele apenas alguma roupa metida numa mala, e  entre as peças de roupa dobrada  esse peso insuportável, que era a vontade que o outro tinha de o abandonar.
Já em  nada se assemelhava ao companheiro de ontem, que ia  palrando enquanto   as rasava com o regador, na mão esquerda até ao fim da varanda.
Que pena não dominar a arte de lhes cortar, cautelosamente,  as folhas secas,
esses pequenos grandes gestos,  formas de amor silencioso, que as mantinha vivas e florescentes um ano após o outro.
Para onde tinha partido  a sua fome?







segunda-feira, 3 de junho de 2019

Sem #Veto

Do lado direito da velha estrada,
seguindo em torno do lago, os pássaros cantavam.

Sentada numa pedra, a um canto sombrio, uma mulher escrevia
sobre aquela tranquilidade.


O sol difuso permitia-lhe ver, ainda assim,
uma roupa estendida numa corda
inchada pelas rajadas, as peças cheias de vento vazio,
a dançar atrapalhadamente.


Escreveu, sem o ver, também o sol brilhante e mais as folhas das árvores verdes
que caíam, ao mesmo tempo.

Tudo muito simplesmente existindo, o que via, e o que não via,
levitando por causa do sol.
Até as sombras podiam levitar por causa do sol, fosse ele amarelo ou laranja.

Inclinou o tronco para observar uma flor.

Lembrou-se, de repente,  que o seu reflexo desaparecia na constante
agitação das ondas do mar, azul, azul, lá tão longe.

Todavia, ali podia ter os olhos atentos aos seus traços,
mesmo que quebrados pelos movimentos ondulatórios da água,
sempre se formava uma figura esbatida.
por entre os limos da superfície.

Era perseguida, muito  discretamente por ela, pela água,
que descia o rio ao seu lado, passo a passo, todos os dias.

Depois de escrever uma última frase:
"O mar também tem ondas cujo brado nos pode enlouquecer",
levantou-se e seguiu caminho, contornando o lago, devagar.


terça-feira, 21 de maio de 2019

Para #Iémen, Ao fim Da Tarde




O homem vivia numa
casa entre as árvores
e da janela lhes via
a bela frondosidade.

Mas as árvores são dos
pássaros, que nelas
fazem os seus lares.

Por isso se confundia.

e, enquanto passeava
ia pensando, devagar:


Se, em boa verdade,
não sou um pássaro
porque tenho, então,
os passos dificultados
pelas dificuldades
inerentes às aves?

domingo, 19 de maio de 2019

Uma #Gamela

Um dia,
um indivíduo
propôs-se
a aprender de novo
a manuscrever
para deixar as vogais
abrirem
naturalmente.

E como
se sentiu feliz
com a decisão
chegou-se à
camisola pousada
sobre a cadeira,
pegou-lhe pelos
punhos,
e iniciou com ela
movimentos
completamente
inesperados,
de dança.

Parecia mesmo que
vinham
verdadeiros braços
abraçando
do interior das suas
mangas.

De seguida,
abriu uma gaveta
com o propósito
de suspender um
banco de jardim
das tábuas
do seu teto de
madeira.

Sem querer,
tornou o vento,
lá dentro, real.




Um Rascunho Para #Noite_junina



Do lugar onde estava, via a cidade
trespassar as cortinas de renda,
para entrar dentro do restaurante,
enquanto eu ia virando o corpo.
ora para um lado, ora para outro,
criando, no espaço segmentos
de conversa,
que se projetavam nos vidros das janelas
passando a superfície de todas as cabeças,
até atingirem a parede exterior.

Observava eu, os músculos
tensos nos seu pescoços,
que eram, para mim,
a linguagem  mais verdadeira,
que me podiam oferecer,
quando alguém
me interrompeu os pensamentos
para lamentar a ausência de
guardanapos de papel.

(Um outro foi levado a relatar-nos
como, uma ocasião,
tudo se demoronou em seu redor.)


(Pingos de estearina  caíam-me nas mãos,
em concha, enquanto ele falava,
mas mantive-as assim o tempo necessário)

Em evidência, bem no centro
da sala, uma  fonte de
água límpida, e potável,
de onde, se quiséssemos, podíamos
retirar  algumas gotas  para fazer
as flores de açucar.

Lá fora, uma multidão de mulheres,
e homens sem rosto,
esperava pacientemente.
Formaram, já, uma fila ordenada
que contornava várias vezes o edifício.

Sentados à mesa falámos, ocasionalmente,
da morte.
Foi uma conversa pequena,
de cinco ou dez minutos, nem  a cidade
chegou a parar
de passar em frente às janelas
e atravessar as cortinas de renda
para entrar no restaurante.








quinta-feira, 16 de maio de 2019

Doris

Do lado direito da velha estrada que serviu em tempos a circulação de carros de bois e carroças, e onde passa agora apenas um automóvel  de vez em quando, e seguindo para poente, há um pequeno casario mesmo no cimo de uma elevação.
Naquela tarde, #Doris_Day dormia a sesta em frente ao castanheiro que crescera numa lateral da capela, enroscada sobre si própria, com a cauda acompanhando a curvatura do corpo enrolado.
Devido às suas extrordinárias capacidades de felino, apercebeu-se de um odor anormal, ouviu com alguma nitidez aquilo que para um ser humano não passaria de um murmúrio ou de um zumbido, pressentiu a possibilidade do perigo do desconhecido, e olhou na direçao da azinheira.
Em cima da árvore estava uma figura extraordinária, vestida de mulher, e com o sorriso mais encantador que alguma vez um gato viu.
A sua primeira reação foi dar um salto, ágil e rápido, para fugir dali, e assim fez, correndo até atingir uma distância segura, e escondendo-se atrás de um amontoado de giestas.
De lá, pôs-se à espreita, na tentativa de entender o que lhe era completamente desconhecido.
O seu instinto de sobrevivência comungando com as suas ancestrais reminiscências de animal caçador, fizeram-na preparar-se para atacar.
Iniciou então, uma corrida rápida até atingir a velocidade necessária para um único e cirúrgico salto.
No momento certo e perfeito, lançou o seu corpo elástico acrobaticamente sobre o mato, e aterrou no longo vestido da criatura, onde se agarrou com as unhas.
Imediatamente a seguir cravou-lhe os dentes no antebraço.
A figura de contornos humanos desiquilibrou-se, e os seus dedos, longos e escamudos, que rodeavam, com força, os troncos que agarravam, abriram-se, displicentes, por causa da dor que a dentada lhe provocou, e ela caíu desamparada.
Todavia, assim que tocou o chão desintegrou-se, sem deixar qualquer vestígio, o que faz com que, ainda hoje, Dorys duvide que este episódio tenha realmente acontecido.

ncncnc

Quando se materializou no planeta terra não esperava tê-lo feito sobre uma árvore. Felizmente que debaixo das roupas ainda possuia as suas garras autênticas para poder segurar-se aos troncos.
Por sorte tinha passado o limite transparente dos dois mundos sem que aquela parte específica do seu corpo, por uma qualquer anomalia do sistema,  se tivesse modificado.
Ao fundo, na velha estrada que servia em  tempos a circulação dos carros de bois, passava agora, de vez em quando, um automóvel solitário, ou era atravessada por pequenos animais que viviam por ali na sua paz.
No topo do monte, em frente ao castanheiro, #Doris_Day dormia a sesta, enroscada sobre si própria, com a cauda acompanhando a curvatura do corpo enrolado,
Pressentiu, com as suas extraordinárias capacidades de felino, o odor anormal, ouviu com nitidez o que para um ser humano não passaria de um murmúrio ou de um zumbido, olhou na direção da azinheira, e viu uma figura extraordinária, vestida de mulher, com o sorriso mais encantador que alguma vez um gato viu.
A sua primeira reação foi dar um salto, ágil e rápido, para fugir dali. Correu até atingir uma distância segura, e escondeu-se atrás de um amontoado de giestas.
De lá pôde observar melhor, e pos-se à espreita para tentar entender o que lhe era completamente desconhecido.
O seu instinto de sobrevivência comungando com as suas velhas riminiscências de animal caçador, fizeram-no preparar-se para atacar.
Iniciou então uma rápida corrida até atingir a velocidade necessária para saltar.
No momento certo e perfeito, lançou o seu corpo elástico num salto acrobático, e aterrou no longo vestido da criatura, onde se agarrou com as unhas.
Imediatamente a seguir cravou-lhe os dentes no antebraço.
A figura humana desiquilibrou-se, e os seus dedos longos e escamudos que  rodeavam, com força, os troncos que agarravam, abriram-se, displicentes, por causa da dor que a dentada lhe provocou, mas, ao tocar no chão, desintegrou-se sem deixar qualquer vestígio, mas Doris ainda hoje tem os seus belos dentes esverdeados.










segunda-feira, 13 de maio de 2019

#Aparição

As pessoas que esperavam no passeio que o sinal para os peões passasse a verde, contam que aquele taxi não respeitou a mudança de cor e  atravessou a toda a velocidade a passadeira.
Mais tarde, quem ouviu as notícias da noite, pela rádio, pela televisão, ou leu nas redes sociais,   facilmente relacionou o sucedido.
Na televisão, o locutor relatava os acontecimentos  usando aquele sorriso indecifrável que servia para qualquer notícia, fosse ela de caráter, lúdico, político ou criminoso.
As imagens que a câmara tinha captado, mostravam o dito automóvel pintado das cores características dos que circulam por aí, preto com a capota verde alface, num desvaire absoluto por entre os outros, parecendo seguir em pânico pela cidade.
Tinha sido notícia, não pela condução desenfreada, mas porque, nas grandes e escorregadias subidas que nos encaminham até ao topo das várias colinas, não é possível atingir grande rapidez, e, por esse facto, vários transeuntes, parados nos recantos menos soalheiros dos estreitos passeios em escada, onde podiam descansar, beber água das suas garrafas e limpar o suor que lhes escorria pelas faces, mas como dizia, essas testemunhas tiveram oportunidade de ver, dentro do veículo, imediatamente atrás do condutor, que agarrava o volante com olhar esgazeado, alguém que seguia  vestido de negro, com um fato e um chapéu de abas largas, que pareciam repousar sobre o vazio, como se dentro da roupa não existisse qualquer corpo.
As suspeitas, lamentavelmente, foram confirmadas. De facto, muitos o viram  chegar ao aeroporto, o homem sem crâneo e sem rosto, passou pela porta giratória, transportando, suspensa, uma estreita mala de mão.
Antes de entrar no avião, quem esperava com ele, sentado nas cadeiras, ou circulando em agitação moderada, por ali, viu-o pousar a mala no chão, abri-la, e rodar o pescoço várias vezes, até se materializar num dos habituais e já nossos amigos  habitantes de Neptuno,  de tez esverdeada e olhos vermelhos, que tanto apreciam vir fazer turismo para esta zona longínqua.






sábado, 11 de maio de 2019

Merlin

Merlin olhava para o caldeirão, desapontado.
Não se lembrava, depois dos cento e vinte anos a memória começou a falhar-lhe, e ainda era muito novo. todos lhe chamavam a atenção, dizendo, vai ao médico que eles dão-te qualquer coisa para isso, mas ele andava a evitar.
O que é facto é que lhe faltavam os termos, muitas vezes cruciais, para fazer transformar as coisas, que punha dentro da panela, e que se modificavam pela ação do fogo.
Até a sopa de beterraba,e a compota não lhe tinham saído bem, quanto mais o feitiço cuja fórmula precisava de ser proclamada por alguém que contivesse sabedoria ancestral no seu curriculum.
Se a técnica fosse conduzida na perfeição, transformaria um balde de excrementos em ouro e distribuí-lo-ia pelos menos afortunados.
Mas não se lembrava das palavras chave, e as excrecências iam borbulhando, já passando do ponto mágico da magia.
Procurou os apontamentos que tinha num bloco de notas muito velho, guardado num canto qualquer.
desviou as abóboras e outros legumes que por ali tinha sobre as bancadas, espreitou atrás da torradeira, abriu as gavetas, animais de porte pequeno saltaram assustados, de lá de dentro, e alguns rastejantes fugiram  pelas reentrâncias, mas o bloco, nada, não estava em lado nenhum.
Voltou a correr para junto do esturgido, para o mexer com uma colher de pau gigante, para não deixar queimar o produto, quando se lembrou de repente, e muito graças aos céus, do que tinha para pronunciar.
O feiticeiro imediatamente prendeu, com um elástico, os seus longos cabelos brancos, e abeirou-se do lume, abrindo os braços e as mãos para invocar outras forças.
Concentrou-se nos poderes desconhecidos da mãe terra, e vociferou como se a voz não partisse dele, mas sim de algum dos deuses imensos que nos observam:
"#YOLO XABREGA!"
O resultado foi imediato, no conteúdo do panelo uma reação química  manifestava-se, e o que era acastanhado começou a ganhar um bonito tom amarelo.
Conta-se que, no dia seguinte, todos os pobres do reino tinham, surpreendentemente, um pequeno lingote dentro da malga do pequeno almoço.










sexta-feira, 10 de maio de 2019

Xabrega


Laura não queria ser apresentada à criatura.
Não porque tivesse muito medo, mas antes porque isso a iria impedir de  brincar com os outro meninos.
Tinha que ficar ali parada, em pé, de mão dada com a mãe, e receber festas na cara daqueles dedos angulosos e disformes que mais pareciam garras.
Quando olhava diretamente para ela, via saírem-lhe pequenas faíscas das órbitas vazias, e, para Laura,o seu cabelo eram larvas que dançavam presas ao couro cabeludo, movendo-se com vida própria, apenas querendo enganar os outros, passando por  cabelos compridos, e verdadeiros, ao sabor do vento.
Os seus dentes afiados ainda continham pedaços do último animal estraçalhado, talvez um pequeno roedor ou um ser humano mais frágil, porque a tia Rosa não comia carne, esquartejava-os apenas pelo prazer de matar.
Laura não tinha receio, estava habituada à família, mas sentia-se muito aborrecida, obrigada a suportar aquelas conversas de adultos.
Olhou mais de perto, e viu fios de sangue que lhe escorriam pela pele borbulhosa e nojenta das faces.
"Cumprimenta a tia Rosa #Xabrega, Laurinha!", insistia a mãe,
"Laurinha, minha querida, como cresceste!" pronunciou o monstro com a sua voz desumana e forte, o que obrigou Laura a agarrar-se  a uma árvore para não voar com o grito  do ser maléfico, que tinha o poder de arrastar todas as folhas soltas e levantar nuvens densas de poeira.
As árvores mais velhas começaram a ceder pelas raízes, e a violência da tempestade provocada transportava  todo o tipo de coisas soltas.
"Cumprimenta a tia Rosa, Laurinha!", já mal distinguia a voz da mãe, tal era a intensidade
do que se passava à sua volta.
Foi quando a criança, felizmente, acordou da sesta.





quarta-feira, 8 de maio de 2019

cnvnk

Estava deitado no chão a perseguir uma formiga com um pedacito de plástico, quando ouviu a mãe a chamar:
"Arnaldinho, o comer está pronto!
Adonde é que tu andas, catraio?"
O Arnaldinho, ciente de não correr nada bem essa coisa de se atrasar para o almoço, largou o que estava a fazer e correu até casa,
Da última vez, nem tinha sido por causa de uma formiga, nesse dia perseguia o avô Laurentino com uma colher de pau, o que tinha agravado a situação, mas mesmo assim era melhor não arriscar, para não ficar toda a tarde de castigo a apanhar pimentos.
"Já estivestes deitado debaixo dos mirtileiros, ou mirtilheiros, ou mirtilios ou lá o que é? Olha como ficastes. O que andavas a fazer?"
"Nada, minha mãe, estava a olhar para a #cruz_vermelha que a avó mandou plantar ali à porta de casa. É porquê, que a pôs lá?"
"Hahaha! És mesmo tontinho, às vezes, meu filho. Não foi a tua avó, foi o teu pai. Ora porquê, porque sim e não falamos mais nisso.
Não, espera, o menino deve saber, já é crescido o suficiente para não o estarmos a enganar. Ele mandou dois homens da aldeia colocá-la no quintal, porque a tua avó lhe fez o choradinho, e isso muda tudo."
O menino, engoliu em seco e abriu e fechou os olhinhos três vezes, por não ter percebido bem.
" Apanhaste umas folhas de Hammamélia Flatullensis Gipsiárdia como a mamã te pediu?
 À não? Distraído que é uma coisa...!  É só subires  este morro e depois desceres o outro, há ali um riacho, passasiu, por cima da ponte, e do outro lado há lá muitas. Vai lá."



domingo, 5 de maio de 2019

Saudade

Quando o avô Casimiro morreu, ninguém queria obedecer à sua última vontade.
Tinha demonstrado forte interesse em que fosse escrito na sua lápide "Hei-de  Atormentar-vos", mas, claro, ninguém queria assumir a responsabilidade de tal ato.
E tanto tempo demorarm a mandar inscrever na pedra aquela bizarra frase, que, um dia, quando um dos seus queridos sobrinhos netos, atormentado pela #saudade, lhe foi levar umas flores ao cemitério, e esperava ver um mármore liso e brilhante inclinado sobre a campa, espantou-se de lá ver escrito muito toscamente, "Então? Estão À Espera De Quê?"
Convenceu-se, evidentemente, que o seu estimado tio avô tentava comunicar com ele através da escrita na pedra, e resolveu responder-lhe usando um marcador fluorescente, que trazia sempre no bolso esquerdo.
"Está Quase" escreveu, e foi-se embora para avisar os outros da impaciência do defunto.
Já era noite cerrada quando se reuniram para deliberar quem comandava a expedição, e acabaram por partir sob as ordens do Jeremias que era o que desenhava melhor e tinha a voz mais grossa.
Chegados ao local, ele, e outros dois,  acocoraram-se junto ao chão e começaram a retirar o material para a escrita, mas eis que uma mão cadavérica eclode da terra e lhes rouba a mochila.
"Mau-Maria, já está a passar das marcas!", afirmou Drizela, enquanto escavava terra a toda a velocidade, tentando encontrá-lo. para o chamar à razão.
Julieta sorria discretamente. Ninguém conhecia tão bem o avôzinho dela como ela. "Traquinas que eu sei lá!", pensava enquanto afiava os dentes no velho castanheiro, que se contorcia de cócegas.
"Até depois de morto não pára de brincar!"
Foi quando Drizela foi puxada para debaixo da terra, e rapidamente engolida pelo chão.





















Quase #Ultra-sons

Espero ansiosamente pela noite para fazer este trajeto.
Rezo aos deuses para que a meteorologia ajude ao gosto dos outros ficarem em casa, e as ruas estejam desertas para eu sair.
Como habitualmente, passo, apressada, esperando escapar à próxima batelada de água,  não querendo perder muito tempo neste percurso desconfortável.
Preciso chegar rapidamente ao lado de lá.
Pela infinitésima vez contorno o pé da trepadeira que vive preso a um canteiro raso ao chão, desvio-me um pouco do sinal de trânsito e do banco de jardim aprisionado no passeio largo, e demasiado próximo das minhas pernas nuas, para evitar as nódoas negras, e também não quero pisar o charco que cobre todo o passeio estendendo-se até à outra margem da estrada e formando um lago.
O lago brilha moderadamente sob a claridade amarelada de um candeeiro.
Atravesso o recinto deserto e mal iluminado o mais depressa que posso.
Sombras anónimas espreitam por trás das cortinas das janelas dos andares mais baixos.
Os astros impenetráveis tomam conta do ambiente, espreitando pelos espaços livres, e daqui já se vêem fracamente as buganvílias que existem no caminho do fundo, mas, depois delas, esse caminho mergulha numa lúgubre escuridão.
Aquelas plantas cresceram livremente, após terem alcançado o topo da cerca, e agora debruçam-se sobre as escadas com os seus braços roxos e pesados pendendo sobre quem passa e tornando quase invisível o luar.
Ouço-lhes a agitação das folhas, que crepitam, movidas pela brisa forte que brevemente se transformará em rajadas de vento.
Passando os limites da cidade, ainda tenho que subir, devagar, até ao topo, onde me sentarei até nascer o dia, observando as montanhas cruas ameaçando a cidade, e só de lá saírei quando já houver tanta gente nas ruas que o chiar das minhas botas de borracha passará a inaudível.
O vale nascerá sobre o nevoeiro e só mais tarde se verão as pontas dos arranha-céus competindo em altura com a cordilheira.
Quando o amanhecer é luminoso, o que raramente acontece, melhor se observam as árvores  em frente às portas dos edifícios, ridículas por causa do seu ínfimo tamanho.
É quando os pássaros sobrevoavam a cidade, à procura de galhos para os ninhos.
Entram no labirinto, onde têm as suas casas montadas, nos últimos andares, junto às caleiras que lhes falam quando a água  resvala pelos tubos.
Todos os pássaros, menos a ave noturna  que grita. Aproveita a penumbra para encher de tal forma a atmosfera com o seu piar inconfundível, que nem entendo de onde provém o som, e por isso tudo grita assustadoramente, com aquelas notas agudas e agressivas a preencherem o vazio da sua solidão.



sexta-feira, 3 de maio de 2019


Pelas ruas não se vê vivalma.
A meteorologia não ajuda a que se permaneça agradavelmente  ao ar livre, embora há muito tenha parado de chover.
Passo, apressada, esperando a próxima batelada de água, até porque não há  tempo a perder , neste trajeto desconfortável.
Pela infinitésima vez tenho que contornar o pé da trepadeira que sai de um canteiro raso ao chão, desviar-me um pouco do banco de jardim, demasiado próximo das minhas pernas nuas. para evitar as nódoas negras, tudo para não pisar o charco que cobre todo o passeio, estendendo-se pelas ervas do caminho, e formando um lago.
cuja água brilha moderadamente sob a claridade amarelada do candeeiro.
Atravesso o recinto deserto e mal iluminado, o mais depressa que posso.
 sombras  anónimas espreitam por trás das cortinas. Vultos que mal se distinguem, movimentam-se devagar como se fossem irreiais.
Os astros impenetráveis tomam conta do ambiente, espreitando pela atmosfera densa, e a lua fosca ilumina fracamente  as buganvílias, que lá existem ao fundo.
Imediatamente a seguir, o caminho mergulha numa lúgubre escuridão.
As hastes das plantas, que crescem livres, após terem conseguido alcançar o topo da cerca, debruçam-se agora sobre as escadas por causa das múltiplas flores, roxas e pesadas, que pendem dos seus braços.
tornam  invisível o luar.
Ouço a  agitação das  suas folhas que crepitam como o fogo, movidas pela brisa forte,
Se não me apresso, essa brisa rapidamente ganha força e renasce em vento.
Subo, pé ante pé.
Só quero chegar ao outro lado, para ver os arranha céus erguendo-se e  competindo em altura com a hirta cordilheira de lá do fundo,
Também de lá, quero ver as  poucas árvores  ridículas em frente aos edifícios cinzentos, pela sua pequenez natural.
As montanhas cruas, ameaçam constantemente a cidade.
Para chegar a casa terei de atravessar ruas vazias, escadas sombrias, sussurros do vento, recantos iluminados por luzes frouxas e amareladas, até ao último desvio, o mais perigoso,
 onde teria que suportar os frémitos incompreensíveis e horrorosos, que nos trazem essas vozes bichanadas, que migram como pássaros de outras paragens, e se introduzem dentro das correntes, para cantar.
Passam de uma para outra cordilheira, sobrevoando a cidade escura.
Contornam as edificações monstruosas e labirínticas que aprenderam a aproveitar, fazendo os seu ninhos no cimento, agarrados no canto da  caleira da água que fala com elas ao passar pelo tubo, se por acaso chove bastante, e que elas rodeiam com o seu vôo controlado, quando vêm da caça..
De noite não estão presentes.
Dormem, aquecendo os filhos, fazem tudo isso ao mesmo tempo.
Procurei não fazer barulho com os meus passos medrosos, quando ouvi o seu grito.
A ave solitária aproveitava a penumbra para gritar, em gritos inconfundíveis que não provinham de lado nenhum.
Mas as minhas  solas de borracha não paravam de guinchar, ao serem comprimidas contra o cimento.
Quando ouvi passos atrás dos meus, acelerei a marcha.





.






quarta-feira, 1 de maio de 2019

a continuar, a continuar, a continuar.

Apercebeu-se, com horror, de que as páginas que ficavam para trás, perdiam irrecuperavelmente o seu número.

terça-feira, 30 de abril de 2019

Um Pássaro



Para arrumar
um livro de poesia,
dirigiu-se às
prateleiras.

Acontece que
calculou mal a distância,
embateu com o cotovelo
contra uma saliência
inoportuna,
e o livro caíu no chão,
desamparado.

Abriu-se,
e um  poema
soltou-se da página
onde estava  impresso,
em #tinta preta,
tamanha foi a
descompressão, e tão
rápida, das folhas
que antes,
se encontravam
fortemente
apertadas
umas contra as outras.

O poema começou
a rodopiar,
atarantado, preso
no ambiente desconhecido
da sala.

Batia  as asas contra
as paredes
e contra o teto,
em voos pequenos
e assustadoramente
cómicos,
apesar das suas
sumptuosas
penas amarelas.

O homem
abriu a janela,
inclinou-se sobre ela
e soprou a lombada
gasta e verde
para sacudir
para a rua
as sobras das letras
desconjuntadas e
do pó.

O pássaro em  verso
apercebeu-se
do céu azul
orientou-se naquela
direção
e desapareceu
pelo espaço livre.

O homem acabou por
guardar o livro
com uma página em
branco a mais.

domingo, 28 de abril de 2019

O Mestre

O #mestre
adormeceu por
uns segundos
e sonhou um sonho
de autocarro
rápido e trepidante,
em que as palavras
lhe fugiam,
imaginou-as
num aeroporto de
malas de mão
porquanto fosse
indiferente
se regressavam
ou partiam
só o facto
de estarem ali
de bagagem no chão
e mãos nos bolsos
à espera do avião
já as sentia longe.

De barriga encostada ao gradeamento
imaginou-as noutros locais,
apetrechadas com os seus apetrechos,
só podiam ser elas
depois de terem tomado uma droga
que as fez esquecer.
Queria acreditar que sim,
que estavam felizes e contentes
só porque já nem se lembravam
dos enrodilhanços
umas nas outras,
de ganharem formas  inconcebíveis
de como tudo foi agradável,
e então abandonavam-no.

Inventava-as nos aeroportos,
de malas nas mãos, porquanto fosse indiferente
se iam ou se regressavam.
Só o facto de estarem ali, de bagagem no chão,
e mãos nos bolsos à espera do avião, já iam
fugindo para muito longe.


Por vezes estavam nas praias
nas conversas debaixo do sol
ou saíam pela boca do homem a ressonar
encostado à janela do autocarro,
enquanto sonhava uns segundos.

Abriu uma saqueta de pó efervescente,
para o alívio da dor.
Diluir num copo de água de oceano
impenetrável.



Fica aqui o testemunho,
As palavras são-me roubadas.
Vejo-as noutros locais, apetrechadas
com os meus apetrechos,
só podem ser elas,
depois de terem tomado
uma droga que as fez esquecer.
Quero acreditar que sim,
que estão felizes e contentes
apenas porque já não se lembram
de como as fiz enrodilharem-se
umas nas outras, ganharem formas
e consistências diferentes,
de como foi agradável,
e abandonam-me para outros lugares
como barcos de pesca
partindo

Imagino-as nos aeroportos, de malas nas mãos,
porquanto seja indiferente
se vão ou se regressam,
Só o facto de estarem por ali, de bagagem no chão
e mãos nos bolsos à espera do avião,
já me fogem.

Por vezes estão na praia,
nos passeios de subúrbio,

ou saem pela boca de alguém,
que ressona encostado à janela,
do autocarro,
enquanto sonha uns segundos.

Nesse caso também as escrevo,
mas primeiro  guardo-as
e deixo-as secar
depois de devidamente
retiradas das profundezas do oceano
pela noite dentro.

Alguém terá que ter  a audácia suficiente
para enfrentar
as águas impenetráveis, mas não seremos nós..

De barriga encostada ao gradeamento.
diluíu num copo de água do mar,
um comprimido efervescente.










O Mestre

Estava a ouvir com a máxima atenção o que o mestre lhe dizia mas não estava a entender grande coisa.
Punha-se a observar o  desalento do homem pelo cair dos seus braços ao longo do corpo, a notar-lhe o ar sofredor e impaciente, quando pela milionésima vez lhe pedia para explicar melhor o que queria dizer, e ele, pela milionésima vez, e na sua imensa sabedoria,  mudava  vezes infinitas o discurso na intenção de que ele atingisse o fundamento pretendido, mas era impossível..
 "A vida é uma espada, e nós caminhamos sobre a sua lâmina"
Cruzes, até ficou com pele de galinha, e não percebeu  onde ele queria chegar, mas alguém o tinha alertado para o grau de dificuldade daquela sabedoria específica, que podia provocar arrepios, e tinha que acabar o curso se não a mãe não haveria de o largar nunca mais.
"Se te aborrecerem, deixa que o karma há-de-lhes cair em cima, como a serpente cai em cima dos incautos!"
"O quê? O que é que é isso, agora? Cada vez percebo menos."
O mestre, por sua vez, retorcia as mãos uma na outra, preocupado. Os seus discípulos estavam a atingir um grau de falta de descernimento como ele nunca tinha visto em trinta anos de carreira.
Às vezes punha a possibilidade de ter perdido faculdades e não se explicar devidamente,
A verdade é que já tinham passado longos anos desde que o último grupo de jovens o  seguiu, voluntariamente, pelos campos fora, entoando cânticos de alegria, e apanhando besouros e outros animaizinhos desse tipo.






quarta-feira, 24 de abril de 2019

O #Jantar

O tio Alberto cuspiu um pedaço de folha de louro que tinha atravessada nos dentes, já há um bom tempo, e aproveitou com o gesto para também disfarçar um certo comprometimento. Tinha acabado de pedir duzentos euros à mãe.
A  avó Joana também revelava sinais de nervosismo, percebia-se que não estava de bem com o filho, e, talvez por isso, deixou cair a posta de peixe corvo, inteirinha. sobre a carpete.
Espetou-lhe o garfo  até ao fundo da carne e  levantou-a com o  punho bem fechado em torno do cabo do talher para a chegar mais perto dos olhos.
" O que é isto? Não vejo. Uma ervilha? Passa-me a lupa!"
"É pescada, avó", respondeu, solícito, e foi-se baixando para limpar o desastre que a senhora tinha acabado de provocar, mas, assim que se inclinou, arrependeu-se.
Do lado do primo Isaías vinha um bafo nauseabundo. "Porco", pensou no momento, mas sem nenhumas más intenções, porque era um menino bom.
Do outro lado da mesa, viu as pernas da tia Alice, com os elásticos a colapsarem-lhe a circulação, os pés nos sapatos velhos e deformados pelos joanetes. "Que nojo", pensou sem maldade nenhuma a criança.
Levantou-se rapidamente e saíu daquela zona, atordoado.
Tão rápido e descuidado foi na forma de se levantar que bateu com a testa na esquina da mesa.
Felizmente estava lá o primo Adérito, que era enfermeiro.
"Afastem-se todos", ordenou, e rapidamente lhe enrolou a massa fresca de volta do crâneo.
Essa intervenção  revelou-se muito importante.
Aliviou-o da pressão  das pontas das estrelas amarelas que orbitavam, no momento, sobre a sua cabeça.



terça-feira, 23 de abril de 2019

#Index

Os livros desapareceram, as estantes foram desmontadas e as paredes ficaram brancas com traços de sujidade geométrica que demarcava a anterior posição de cada um.
Foram colocados em caixotes, que por sua vez foram selados com uma larga fita adesiva, que juntava as partes num todo e fazia deles um único volume.
Mais tarde, lavaram e pintaram as paredes, reduziram o número de objetos expostos, fizeram uma sala ampla e agradável, de linhas direitas e muito conforto, agarraram nas caixas com peso insuportável e levaram-nas para a casa de campo, na aldeia onde moravam todos os avós.
Na casa de campo havia ratos que gostavam de roer papel e  podiam comê-lo.
Em plenos dias de sol, se a velhota estava do outro lado, do lado do quintal, eles sentiam-se em  total liberdade, nem precisavam de se esconder correndo de sombra em sombra, camuflados atrás dos móveis  que tapavam a luz difusa que entrava pelas janelas durante a noite.
A begónia, imóvel, vegetava num vaso ao centro de uma  mesa redonda, e as suas folhas vivas confirmavam a presença da mulher que, de vez em quando, a regava com pequenas porções de água fresca para a alimentar.
Agarrou numa  faca e cortou o cartão que rodeava tantos livros amados, e, durante uns tempos, entreteve-se a forrar a casa com eles.
As caixas vazias levou-as para o lixo, a custo, e enquanto percorreu o caminho descendente, transportando-as, vezes sem conta, passando o portão de ferro até chegar ao contentor, ia atevendo, satisfeita, a companhia que teria de futuro com tanta literatura para preencher as horas mortas.
Sentou-se no sofá abrindo um qualquer, por ler, nas primeiras páginas.
Olhou em volta e apreciou a aparência das lombadas e das madeiras obscuras, quedas e mudas, circundando a casa.






domingo, 21 de abril de 2019

Glorioso




Era uma vez um rapaz que tinha os olhos azuis.
Quanto a isso, nada de extraordinário, existe muita gente com olhos dessa cor, mas acontece que os seus olhos eram tão intensos, tão luminosos e penetrantes, que as pessoas se sentiam incomodadas ao olhá-lo fixamente.
Enquanto foi de tenra idade, ajudado pela candura própria dos muito pequenos, não se revelava tão perturbador, mas, à medida que foi crescendo, e absorvendo todos os tipos de emoções, que o fizeram perder a inocência, fixá-lo diretamente tornou-se quase insuportável.
Se, por acaso, alguém ficava preso por uns segundos naquele encantamento, sentia receio e desconforto.
Naqueles tempos  #gloriosos, não havia leis que protegessem de si próprios, nem dos outros,
os rapazes com olhos azuis, demasiado poderosos e fundos, daqueles que ninguém consegue olhar.
E era por isso que ele baixava a cabeça, quando nos dirigíamos a ele, para que ninguém  se sentisse confrontado, e entrava num mutismo triste.





sexta-feira, 19 de abril de 2019

Nem por isso

Tal como fazem a grande maioria dos jovens, também ele ía para todo o lado sem chapéu de chuva.
Por isso aproveitou uma aberta no céu, e saíu de casa na esperança que o S. Pedro não o arreliasse com uma chuvada daquelas que nos estragam o resto do dia, por causa do desconforto de ficar com as roupas molhadas e frias coladas a nós.
Apesar dessa possibilidade,  arriscou. Arriscava sempre, pois não gostava de andar com aquele empecilho atrás, temendo perdê-lo e ter de ouvir um a descompustura da mãe,  para além de ter de carregar um objeto  que lhe atrapalhava os movimentos e que interferia na sua bela capacidade de se abstrair do que o rodeava.
Passaria o tempo a ter de se lembrar onde o tinha colocado, ia esquecer-se dele em vários sítios, ia ser obrigado a voltar para trás à porta dos cafés e dos bares. até, finalmente, lhe perder de vez o rasto.
Quando a Dona São arrastou uma das muitas cadeiras para limpar melhor o espaço, antes de o fechar e ir para casa dormir, percebeu que  ela não se movia, trancada por uma das pernas a bater em qualquer coisa. A mulher, já cansada de tantas cadeiras e outros móveis para deixar limpos e arrumados, começou a puxá-la com a maior das forças, mas ela não cedia nem por nada.
Ao baixar-se, já saturada de fazer esforços, para entender o que lá estava por baixo  impedindo a passagem, viu o  chapéu e sentiu uma enorme raiva dentro dela.
Ele que venha cá buscá-lo, e ver se não lhe dou com ele no lombo, pensava, irritada, mas lá conseguiu soltá-lo, apesar de partido em vários pedaços.
O rapaz entrou no estabelecimento a tempo suficiente de ver o estado em que ele tinha ficado.
A sua irritação também foi bastante. Quem era aquela mulher para destuir as coisas que não eram dela? E pediu-lhe satisfações.
A raiva alimenta a raiva, já sabemos, talvez por isso começaram ofender-se mutuamente, "#estudante da treta, só queres é copos", e "velha do caraças não tenho medo de ti!" foram as melhores das frases no meio de tantos impropérios, e iniciaram o arremesso de pequenos objetos um contra o outro, tais como beatas dos cinzeiros por despejar, caricas das garrafas de cerveja, restos de fruta das sangrias, e até mesmo o líquido que repousava no fundo dos copos deixados nas mesas.
No momento em que deixou de haver projéteis disponíveis a dona São tirou um apito do bolso da farda e gritou "Stop", acabando com a batalha.





















terça-feira, 16 de abril de 2019

E Se Fosse #Bibi_Andersson?

O consumo de água foi restringido e eu coloquei a hipótese de dizer adeus à plantas carnudas e vivas que tinha no quintal.
Consumiam, efetivamente, água demais, o verde intenso embriaga-se com a transparência do líquido  e com a sua  humidade, e se me livrasse delas deixava de ultrapassar o que naqueles tempos nos era imposto.
Mas essa medida drástica acabou por se revelar desnecessária.
Após muitas  horas de trabalho efetivo, consegui que aprendessem a beber menos e a sobrevirem igualmente esplendorosas.
Os plásticos estavam finalmente a ser reduzidos, havia fontes espalhadas pela cidade para as pessoas saciarem a sede sem terem de comprar garrafas imprestáveis, havia bocas que se inclinavam debaixo da água pura que caía, em fio,
No entanto, todavia, não era permitido roubá-la com outros fins, e os polícias palmilhavam os jardins e os passeios, aos pares, atentos ao que se passava.
(Entre as três e as quatro da manhã não havia ronda. Era quando eu aproveitava para lá ir e de lá retirar uns quantos litros proíbidos.)
O vizinho do lado nunca me foi simpático.
O seu pedaço de terra, idêntico ao meu, tinha sido empedrado e servia agora para algumas arrumações.
As ferramentas ficavam protegidas debaixo de uma pequena barraca de zinco que ele tinha montado junto a uma das paredes.
Os gatos aproveitavam para saltar para cima desse telhado, depois para o muro, onde se equilibravam na perfeição enquanto o percorriam até à outra ponta, e onde, finalmente, pulavam com elegância para os meus pés.
Primeiro perseguiam as abelhas e depois chegavam-se aos canteiros, e arrancavam ervas para comer.
De seguida subiam para o parapeito  da janela da cozinha, e esperavam, impacientes,  e com o olhar inteligente dos gatos, que eu, de lá de dentro,  lhes desse  pedaços de frango e de peixe.
Durante a tarde, deitavam-se em frente à porta, porque eram as horas do sol incidir sobre o tapete.











domingo, 14 de abril de 2019

#Zaire (da série, Obrigada, Boris Vian)


Dois de abril de 2019
Três lírios roxos acabaram
de nascer
Dobram o riso para o sol
como fazem as
crianças pequenas.


Três de abril de 2019
o nevoeiro voltou.
Sorrateiro,
preenche todos os cantos
e todos os canteiros.

Dez de abril de 2019
Pressinto que
alguma coisa de
diferente
está para acontecer

Dezassete de abril de 2019
Não fosse a iluminação de
dum candeeiro
e nunca veria aquelas
flores

Trinta e oito de abril de 2019
Aborrece-me tanto a beleza
das coisas,
que volto para
trás.

Trezentos e dois de
abril de 2019.
É o mês da primavera
sem fim


Duzentos e vinte mil
de abril de 2019.
As pétalas coloridas
e as folhas velhas e cansadas
suicidam-se
caindo em queda livre
de lá de cima
e eu vou  varrê-las.

Quatrocentos de maio.
Com um ramo de margaridas
nas mãos, Margarita
regressa do #Zaire.
e aqui permanecerá
até cinco de junho.













sexta-feira, 12 de abril de 2019

Rapunzel


Rapunzel, do alto da torre, atirou o cabelo entrançado pela janela, para ele subir.
Assim que o rapaz se pendurou, Rapunzel sentiu uma dor aguda a atravessar-lhe o coro cabeludo,
Pára, estúpido, disse ela, estás a magoar-me!.
Ele imediatamente saltou para o chão.
Desculpa. Então como é que fazemos isto, Punza? Tinhamos combinado assim.
Com os meus cabelos é que nem penses. Espera. Vou pedir ajuda à minha bendita avó,  Ermenegilda a Assustadora, que está encarcerada na torre Oeste, porque o Torres, olha, nem de propósito, o nome dele, bem, o Torres  vai lá ter com ela durante a noite muitas vezes.
Rapunzel, passados segundos volta com instruções da avó, e com pão da avó e doces da avó para lancharem.
Ela diz que ensinou os cavalos selvagens das montanhas sinuosas aqui em frente, a formarem uma escada com os corpos até cá acima, e depois é só subir, ou descer, conforme para onde te dirijas.
Sabes mandar os cavalos fazer isso?
Eu não. Eu só sei subir pela trança. Mas vou chamá-los, pode ser...
Ó cavalos! Cavalinhos!? Venham cá! 
#Xará, o Crina Dourada arrebitou as orelhas para ouvir o assobio. Alertou os companheiros e a esposa, a belíssima Pata Leve e os seus filhos e  amigos.
Juntos, cavalgaram deixando para trás o esvoaçante campo de papoilas onde se encontravam a pastar e desceram até ao palácio de mármore.
Rapunzel, de lá de cima, vê os animais levantando pó ao descer a colina, Pareciam loucos.
O príncipe ficou aterrorizado pensando que era o início da guerra que seu pai, o Rei Soldado, tinha acabado de proclamar, mas Rapunzel tranquilizou-o. "São os cavalos que a minha bendita avó Ermenegilda a Assustadora ensinou, não te assustes, príncipe, chá do meu coração."
Xará, estancou o galope antes de atravessar a ponte arredondada sobre o riacho porque Pata Leve estava grávida e começou com dores de parto.
Entretanto uma família numerosa de pés descalços ia a passar por ali. De todos, o de maior coração era o avô, pelo que resolveu ficar para trás, com o objetivo de ajudar a égua naquela hora difícil.
Rapunzel, aborrecida pela demora, recolheu a trança, fechou a janela e foi ver televisão.
Alguns anos depois, Hermenegilda faleceu.













quinta-feira, 11 de abril de 2019

#Virgínia_Woolf, ou Mais Uma História de Amor.

Belita procurava desesperadamente o amor.
Até ali tinha tido vários relacionamentos mas nenhum durara muito tempo, e começava a sentir-se triste por não ter encontrado ainda o parceiro  da sua vida.
Um dia, cruzou-se com Frederico o vizinho, seu amigo desde os tempos em que fumavam às escondidas atrás da casota do cão, e que vinha acompanhado pelo seu tio, um industrial de sucesso na área da construção.
Tinham acabado de almoçar e o senhor  vinha palitando os dentes duma forma tão sensual, que Belita sentiu variadíssimos arrepios ora pela espinha abaixo, ora pela espinha acima, numa dinâmica completamente nova para ela.
A Justino também ela não passou despercebida. Belita era muito bonita, ainda, apesar da juventude já ter lhe ter fugido há um tempo, e aliás, quando é o momento de encontrarmos a nossa cara metade nem reparamos se aquela pessoa é careca .ou lhe faltam dentes, ou se não cabe dentro da roupa, e outros pormenores que não assumem qualquer relevância.
Frederico percebeu de imediato o que se estava ali a passar e resolveu afastar-se, não sem antes comentar, "Ai, ai, ai, seus marotos, vamos lá ver!"
Quando Belita e Justino ficaram sós, chegaram-se mais um para o outro, um pouco envergonhados, mas com uma felicidade crescente a invadi-los, e um calor difícil de suportar nas faces enrubescidas.
Frederico, que tinha ficado a espreitar atrás duma árvore, pois era fã incondicional de histórias de amor e do bem entre as pessoas e os povos, viu, com agrado, Justino oferecer o palito usado a Belita, que o reutilizou imediatamente, encantada e com enorme prazer.


Vamos lá ver

Ao invés de estar tudo preenchido, faltava um livro gordo ou dois mais pequenos, não sei.
Entre um velho roteiro de Londres e Virgínia Woolf, Msr Dalloway,
Na prateleira de baixo, viviam Philip Roth, Umberto Eco, Murakami e Valter Hugo mãe,
Não se dão uns com os outros, evidentemente, por isso é que no andar de cima o outro fugiu dali para fora nem sei qual,
José Luis Peixoto, 2666. tortos, velhos.
Proust, Paul Auster, Tolstoi, Lídia Jorge, Agustina, cada uma a puxar para o mesmo lado, e eles vão inclinando, a prosa de pessoa em papel couché , não os aguenta no topo, e eles vão inclinando dando o aspeto desleixado que não pode ser.
No último andar, Thomas Mann mantém-se ereto, mas os três ao lado, pimbas, caíram, e porquê,  o Gaudi não foi suficiente para travar a sua queda porque é demasiado pequenino.
Felizmente que a tinta preta em fundo escuro não me inquieta, mas é mal escolhido, só eu sei de quem se trata, é a aldeia de Faulkner, mutio mais cinzenta que verde escuro, enfim...


Pff! Coitados, nem se dão nada bem, acho eu. Quem terá fugido foi quem não suportou a companhia. Onde já se viu encaixarem-nos entre  um velho roteiro de Londres e Virgínia Woolf, Msr Dalloway?

Vamos lá ver, alta-me um livro gordo, ou dois mais pequenos, não sei, entre um velho roteiro de Londres e Virgínia Woolf, Msr Dalloway.

Caríssima #Virginia_Wool
Mrs Dalloway, não sei onde está.
Fugiu-me da prateleira,
estava tão sossegada entre
um velho roteiro de Londres
e a prosa de Pessoa,
que é, aliàs, uma porcaria
de livro, que não segura os outros,
e que ficam inclinados e feios
por causa dele.

Aquele 2666,  tão  torto, coitado!
Agora também vos digo,
em abono da verdade,
Tommas Mann,
no andar de cima,
aguenta-se ali, firme e hirto,
direitinho e elegante.
ui, ui!

Naturalmente, a senhora não gostou que Anna,
do outro lado da sala, morresse esmagada
pelo comboio,
mas eu não tenho qualquer responsabilidade
nessa históra.


Aposto em como se foi pendurar
 nas pás de uma ventoínha
em terras de cor e sol  e areia.
Eu a ela também fugia para  esse,
lá para a América do Sul,
calorzinho, refrescos, bem bom!

Também pode estar no sotão
amuada, num canto qualquer...






quarta-feira, 10 de abril de 2019

mamam

Pulava entre os escombros, saltava as instáveis pedras de mármore rosa.
Nada disso, nem sabia o quê. Cansaço ou loucura ou sonho.

Era já tarde tardia,  quando fui mandado parar numa operação stop. Depois da devida apresentação dos documentos que se encontravam, evidentemente, em ordem, os polícias mais altos e mais gordos mandaram-me abrir a bagageira do automóvel.
Tentei evitar, falando-lhes no tempo, que chuviscava, formando brilhos deslumbrantes sobre a água.
e outras imagens maravilhosasa, na tentativa de dinamizar as suas veias poéticas  mas não ligaram nenhuma, até fizeram  uns trejeitos na direção dos colegas, como que para dar a indicação de  que  eu tinha um discurso desconexo, que provavelmente não estaria bem.
Como não se deixaram desconcentrar,  lá tive de obedecer, rezando para que passassem dspercebidos
. Tinha-os tapado com uma manta. Atirei com ela lá para dentro de forma displicente, e ela caíu, aleatoriamente sobre eles, para dar um ar ocasional à desarrumação, deixando prever nada, ou ninguém, escondido lá debaixo, mas, nunca sabemos até onde vai a perspicácia de cada um, e cada caso é um caso,
Levante aí essa manta encarnada, ordenou o mais franzino, e mais inteligente, e eu não tive outro remédio senão obedecer, levantá-la, descobrindo as três bestazinhas que levava  de volta para o seu habitat natural,  sem que ninguém soubesse.
Quando se viram destapados, sorriram de contentes por causa do sol que lhes incidia nas ventas, e quando sorriam, mostraram-lhes uma fileira de dentes, pequenos e  afiados, próprios para morder.
mas desativados fazia muitos anos.
Apesar de bonzinhos, continuavam com um aspeto aterrador, os agentes da autoridade não arriscam quando se trata de criaturas horríveis provocando propositadamente, e perseguiram-nos com os seus bastões.
Mas eles conseguiram esgueirar-se, e ainda hoje andam por aí, escondidos nas reentrâncias da cidade.















segunda-feira, 8 de abril de 2019

ncehfeifh

Na segunda prateleira falta um livro. Nada se modificou, podia nem dar por isso, francamente nem sei qual é.
Quae mania têm os meus livros de ir passear sem me dizerem nada, sem um aviso desaparecem do mapa de lombadas.
Silenciosos, falam.


Solstícia e Vagibunda  eram muito amigas. Tão amigas que sei lá eu explicar isso ou me apetece sequer fazê-lo.



Quando não me ocorre nada
para escrever
é que é do caraças.
Até porque me apetecia.
Bloqueei.
Pff!


Toma lá uma tosta para colares à testa
com cuspo.
Tens sete tentativas. É muito.
Se não passares no #teste,
 besta,

Era uma vez um rapaz que queria ser uma Besta mas não estava a conseguir nota para isso. Fazia todos os testes, mas, embora obtivesse boas classificações, não eram suficientes para para entrar nas vagas disponíveis, que eram escassas, dado o elevado número de pessoas que queriam ter aquela profissão.
Ganhava-se muito bem, o que, evidentemente, proporciona uma melhor vida, e para além disso, havia um grande reconhecimento da sociedade, quase uma veneração e, não havia quem não se orgulhasse de dizer aos amigos e aos conhecidos que tinha na família uma ou mais pessoas com aquela profissão.,
Recordo-me, com alguma ternura, da minha amiga Laura, emocionada,  ao apresentar-me o avô, agora um velhote aparvalhado, enquanto me explicava que ele, em novo, tinha sido, se não a maior, pelo menos uma das maiores bestas daquela cidade.

Esta palavra, hoje, só pode ser ser um #teste.



















domingo, 7 de abril de 2019

Saúde

"O que me falta é a #saúde sr. Almeida, ele é os olhos, o estômago, os pulmões... E os ossos, sr. Almeida, os ossos não me deixam andar, então com este tempo, parece que tenho farpas enfiadas nos joelhos e lobos a morderem-me os cotovelos!"
"Lobos?
"Sim, lobos. Quem diz lobos, diz cães selvagens,ou assim... E olhe, outro dia aborreci-me, a tensão disparou parecia um foguetão a ir para a lua, só fiquei com medo que rebentasse, como alguns.
O meu coração agarrou uma velocidade estonteante, pensei que desmaiava, mas lá me sentei no baloiço dos miúdos, ia a passar por ali, só que fiquei presa no assento, aquilo não é para mim, está visto, queria sair  e não conseguia, veio um homem, o diabo em pessoa, e começou a rir maldosamente e a empurrar o baloiço com toda a força,  caíu-me o saco do pão e a mala, eu gritava, cheia de medo, pára malvado, filho de Satanás, mas ele não quis saber e eu a balouçar furiosamente, é claro que me senti mal a seguir, mas vá lá, serviu para me desprender.
O pão de Mafra, nem me faz nada bem, mas é tão bom, foi parar ao cimo do escorrega, tive que lá ir buscá-lo, só que não me aguentei e vim por ali abaixo, com uma aflição e um medo, valha-me nossa senhora!
Mas olhe, sr. Almeida, até foi engraçado,  agora ando sempre por ali a rondar, a ver se me divirto mais um pouco, infelizmente nada acontece. Se calhar é porque deixei de comprar daquele pão, que me incha o intestino, até os vizinhos já se queixaram, dizem que ouvem granadas de mão a rebentar aos seus ouvidos!"
"Granadas?"
"Quem diz granadas, diz trovões em dia de tempestade, mas depois olham pela janela e não se passa nada, os dias estão lindos e soalheiros, claro que desconfiam.
Mas deixe lá sr. Almeida, e o sr. como está?"




sexta-feira, 5 de abril de 2019

Dona Angelina

Atrás da capela, havia um pequeno terreno onde a dona Angelina, com a devida autorização do padre, tinha feito uma hortazinha.
Acontece que nem sempre as coisa lhe corriam como ela esperava, já que os pássaros, juntamente com os gatos, os cães e as toupeiras lhe estragavam  o que ela lá tentava semear ou plantar.
Uns gostavam das sementes, outros das folhas tenras, os cães deitavam-se em cima dos alfobres acabados de colocar destruindo tudo, as toupeiras e os ratos roíam os tubérculos mais saborosos, enfim, o espaço tornou-se a alegria dos animais e o desespero da dona Angelina.
Era frequente ver-se ela sair pela porta dos fundos a ameaçá-los com o santo António nas mãos, ou a esfregona, pronta a atingir os que conseguisse apanhar.
O padre Libério já a tinha aconselhado a desistir, mas ela, teimosa, insistia que, se Deus quisesse, alguma coisa haveria de vingar, para dar aos mais carenciados da aldeia.
Um dia, enquanto passava a ferro o hábito do senhor prior, junto à janela, ao mesmo tempo que controlava os melros, reparou numa figura encostada ao muro, e que nunca tinha visto por aquelas bandas.
Desligou o ferro de engomar, cuidadosamente, pousou-o na tábua, e saíu de casa para se dirigir ao homem, com o intuíto de lhe perguntar o que queria.
A criatura repondeu ao seu cumprimento, muito amavelmente, um anjo,era o que parecia, com as suas vestes brancas.
"O que queres?" perguntou a senhora.
"Venho lembrar-te, mulher", respondeu a simpática criatura, "Para teu bem, e para o bem de todos os seres vivos que tão felizes são neste lugar sagrado, não ignores  a #quinoa!"
Felizmente que tinha uma caneta no bolso do avental  para lhe pedir um autógrafo, porque queria ficar com a recordação de ter visto um anjo ao vivo.
O anjo escreveu-lhe nas costas: "Felicidades para todos", e assinou: Anjo
Depois  despediu-se, deixando a dona Angelina a chorar de felicidade.








Xará

#Xará, o meu grande deus está
sempre ao pé de mim.
Creio na sua bondade infinita,
na sua existência etérea
circulando dentro dos homens bons.

Assim de repente,
vem ter comigo sob várias formas,
umas preso no vento, outras na chuva,
ou nos barcos de pesca afundados
no horizonte,
com os seus movimentos  tão longe,
que levam um tempo infinito a descrever.

Nada palpável me toca, apenas gestos nenhuns.

É
o som inconfundível  do amolador.

Nunca o vejo,
Apenas tenho vontade  de o ouvir
por aqui.

(Mas ir-se-á embora.
Saltará desta para outra invenção,
num ápice,
para um conto infinitamente mais poderoso
do que este,
com as palavras certas, no seu lugar verdadeiro.
Irá!
Às vezes, também acontecem coisas brutais,
vai procurar outros poemas mais belos
do que os
meus, eu sei,
em busca da tranquilidade.
Seja feliz.
Insistirei sempre em
inventar
outro homem e outra mulher,
até serem tantos que se torne
impossível ignorá-los.)



(Mais uma carta de amor,
pronunciou baixíssimo,
enquanto encolhia
os ombros displicentemente)

Não faz qualquer sentido,
os personagens abandonam-me
à procura de outros lugares sem caos.


Os cenários são-me lançados
na cabeça por uma força  desconhecida,
Há uma conjunção de enzimas
trabalhando em simultâneo
que ativam
os hologramas que me confundem,
e que esqueço pela manhã.

Um dia, lá para do fundo dos sonhos,
muito longe daqui,
pularei as rochas desiguais dos penhascos,
os penedos das ruínas de um velho forte
que desaba
e quando desabar provocará um ruído enorme,
mas,
já todos terão fugido,
só eu permanecerei no silêncio das rochas
que tremerão a meus pés,
provocando-me pavor.

Naquele tempo,
era habitual  percorrer as aldeias
com os meus bonecos, para os fazer rir.
Procurava um terreno favorável
Primeiro montava o cenário,
e  depois desmontava-o,
e depois partia para outro lugar,
atravessava a mansidão
dos pinheiros na beira de estrada,
onde me demorava propositadamente.
Às vezes parava
para partir pinhões entre duas pedras,
e  comê-los, um a um.

E o meu bom Xará acompanhava-me
naquela vida de saltimbanco,
espalhando a minha alma
pelo caminho.







quinta-feira, 4 de abril de 2019

mm

Lá para o fundo de uns terrenos, já no fim do casario que descia o monte alinhado em relação à  estrada, havia uma casa muito bonita, arejada entre o gradeamento de ferro forjado e verde, que mal tapavam ou protegiam as suas varandas estreitas, por todo o lado.
Via-se o milheiral até aos salgueiros quando penteavavm as suas grandes cabeleiras junto ao rio, debruçados sobre a água penteando as suas longas cabeleiras. a água que lhes servia de espelho.
Havia a solidão das grades de ferro, os cães zangados como não se zangam por cá.

Quando observei melhor, vi os salgueiros a pentearem as suas grandes cabeleiras lisas debruçando-se sobre o rio, e aproveitando a água como espelho, para lá dos milheirais dos lodeiros.
Os meus pés sentiram o poder da terra como se o tempo não tivesse passado por mim.
Lembrei-me do ferro forjado que encostava à barriga para melhor observação dos pássaros, para lá do rio, mas ainda hoje me parece solitário atravessar o pinhal dos fantasmas sossegados, ou ouvir o lobo na noite, entre  da madeira dos móveis e os ruídos incomreensíveis das telhas.

Chovia, assim como hoje.
Os salgueiros debruçavam-se
para, aproveitando a escassa
luz e o espelho que
lhes fornecia a água do rio,
pentearem as sua longas cabeleiras.

Encostava a solidão da barriga
ao gradeamento
na bela casa das varandas
que davam para os lodeiros verdes,
atravessava o milheiral com os olhos
até lá ao fundo, onde se penteavam
os salgueiros,
para os ver na chuva,
assim como hoje.






domingo, 31 de março de 2019

Levedura

Para dar descanso à cabeça, e para desentorpecer as pernas, Herculano gostava de brincar com o animal. Sentava o rabo achatado numa pedra qualquer, agarrava num pauzito que por ali estivesse no chão, atirava-o o mais longe que conseguia alcançar, e a galinha ia a correr buscá-lo e trazia-o de volta preso no bico.
Os cães tinha uns certos ciúmes da galinha Laurinda mas não o relevavam pois sabiam que o seu dono, ele próprio haveria de lhes dar, ao final da tarde, depois de um duro esforço intelectual, metido no escritório todo o dia, e para relaxar, uma boa porção de comida desidratada da melhor existente no mercado, com flocos de #levedura  tailandesa e sementes de jasmim.
Um dia, um dos cães mais robustos adoeceu e foi preciso levá-lo ao hospital.
Chamou a esposa, que preparava o jantar dos seu pequenos monstros imprestáveis, e ela, preocupada, largou tudo o que estava a fazer, meteu as crianças numa jaula concebida para deixar filhos amados sózinhos, deu-lhes água mineral proveniente de uma maquineta que adquirira e que mineralizava água deixando-a com o equilíbrio iónico recomendado pela OMS para pequenas bestas parvalhonas, atirou-lhes ossos a fingir, que comprara, de materiais pouco perecíveis, é certo, mas necessários para evitar que eles lhe roessem as pernas das vacas enquanto dormiam, duas garrafas de cerveja e um balde para as necessidades feito em cartão reciclável, agarrou a mala disforme e gorda de tantas faturas e papeís multibanco  que engolia e não conseguia vomitar sem ajuda, pegou no bicho e entrou no carro para partirem a toda a velocidade possível.
Felizmente, não era nada de grave e regressaram satisfeitos, por causa da alegria contagiante que tinham encontrado no ambiente da clínica hospitalar, e pelas rápidas melhoras do cão que conduzia, agora, o automóvel.
Laurinda esperava-os ao portão.