domingo, 6 de novembro de 2022

Um Passeio Por Lisboa

Ao continuar,
julguei ver aquela velhinha a fazer contas ao tempo consumido, mas se calhar foi apenas uma impressão.
Dei por ela porque havia exposto sobre o banco do jardim as pantufas que acabara de tecer. Estava de pé, mas tinha um joelho encostado ao acento de madeira, talvez para se apoiar, ou para equilibrar melhor o corpo débil.
Com as mãos manuseava as agulhas e delas escorriam para um saco de plástico fios amarelos e laranja, as mesmas cores que se viam no trabalho já terminado e colocado sobre as ripas, mas, confesso, não gostei daquela mistura de tons tão descaradamente feia, que chamou a minha atenção, desconcentrando-me os  pensamentos e a não contribuir em nada para atenuar a preocupação que  me vinha perseguindo fazia uns tempos.
Perguntei-me porque estaria a mulher de pé.
Nem sei se por falta de talento, ou por inevitável  absorção das palavras escritas, como se me fossem imprescindiveis à vida, como a água para matar a sede, ou o oxigénio incolor que nos alimenta os pulmões, os ossos, os músculos, as mãos,  julgava imitar descaradamente as páginas do livro que me pesava nas costas, como sempre, o último autor,  dentro de uma mochila azul colada às costas, o medo real de que as minhas linhas de palavras, ou estivessem mal escolhidas como aquelas cores ou, para piorar um pouco as coisas, seguissem sem controlo algum, com um formato que não era o meu, uma espécie de usurpação inconsciente daquela voz recente, e que me vinha seguindo pela rua acima.
Receava, por isso, o próximo encontro com uma folha em branco
A cidade, afinal, nada tinha de mágica, foi o que me deu para entender ao subir e descer e subir e descer alamedas, atalhos, trilhos e veredas, antes sofria progressivos encantamentos, conforme cada estação. Era, surpreendentemente, um objeto nas minhas mãos. Tem horas qua a sua beleza é quase comovente. Pode ser ao fim de tarde, de manhã, conforme o sol esteja mais perto, ou mais longe. Basta que ele exista e incida sobre uma das colinas opostas aos meus olhos, quando reflete nos vidros das janelas lá ao fundo, ou mesmo na longínqua superfície do rio.
Após uma avenida ruidosa, deparei-me com um oásis de árvores centenárias, num canto do meu caminho silencioso.
Não é, não, não é uma cidade mágica, mas sim o objeto imaginado por ti, onde sempre alguém aparece.
Pode até ser num domigo de manhã, cinzento luminoso, ou negro noite pintalgado de luzes e guarda-chuvas.
Mas não era esse o caso, estava, de facto, um belo dia.
A velhinha deveria preparar-se para regressar a casa, onde talvez um gato a esperasse, talvez um pássaro tivesse atirado para os mosaicos quadrados as cascas das sementes que acabara de comer, talvez fosse um papagaio verde e a gaiola estivesse muito suja, não sei.
Um tacho em alumínio haveria de repousar sobre o fogão de dois bicos, com a dose indicada para o seu jantar de sopa de couves e outros legumes, calculo, mas, após decidir regressar, lembrou-se de emendar o erro que acabara de cometer, refazendo as últimas malhas, e depois, certamente, achou por bem não deixar aquela volta a meio, percebo-a muito bem, e decidiu, já de pé, acabá-la antes de meter tudo no saco para regressar a casa, e esperar pela próxima tarde de sol.
Quanto a mim, não me chegou tão bonito passeio para amenizar as incertezas, não foram suficientes os movimentos imaginados de uma mulher a fazer tricot. Mantenho o mesmo receio, as mesmas dúvidas, mas é-me impossível dizer que não escreverei #nunca-mais.





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