quinta-feira, 23 de julho de 2015

Experiências

A D. Lurdes preparava o almoço para ela e para o marido, que desde que se reformara , todas as manhãs ia beber um café e passar um bocadinho de tempo na pastelaria da esquina. O Antunes, todos, até ela, lhe chamavam assim, dava dois dedos de conversa com os vizinhos, via as raparigas bonitas a passar, às vezes metia-se com elas, embora o fizesse cada vez menos desde que, em frente aos amigos, uma miúda lhe tinha chamado "velho porco", não tanto pelo ar trocista do Sr. Inácio e do Ventura, mas mais por aquela rapariga tão gira fazer dele semelhante ideia.
A D. Lurdes, quando estava em casa, vestia uma roupa trangalhadanças qualquer ( utilizei esta palavra para não a deixar morrer), calçava uns chinelos confortáveis de tão velhos, e a D. Lurdes estava quase todo o tempo em casa, embora fosse por ali às compras, isso não eram saídas, conversas de um minuto com a senhora da mercearia, outro com o rapaz do talho, e com a Deolinda, que todos os dias fazia o mesmo circuito sempre com o miúdo atrás: cabeleireiro, papelaria, três entradas no café, duas delas de meia hora, a ensinar coisas ao filho entre o penteado da Joana e o folhado de salsicha. E o Antunes, á quinta feira, ia ao café do outro lado da rotunda, porque o de cá estava fechado. Sentava-se na esplanada, e até estava ali bem, a ver o movimento das pessoas e dos automóveis, mas parecia-lhe que daquele lado havia bastante mais velhas.
A D. Lurdes nesse dia não foi à rua, por isso nem se penteou, e ainda mantinha no cabelo a pressão da almofada, e os brincos de ouro pendiam das orelhas ligeiramente cortadas. Estava a fazer bifes e a fritar batatas porque o marido gostava, e ela gostava de qualquer coisa, e o jantar era o que gostasse a filha.
O Antunes chegou a casa com a testa a doer-lhe e falou-lhe da porta da cozinha: "hum, cheira bem Lurdinhas, estou cheio de fome", e ela nem se virou, e ele aliviado por adiar a justificação para o inchaço do nariz.
_Ai, Antunes! O que é que aconteceu? A D. Lurdes foi arrumar umas chávenas á sala quando viu. _Olha, bati ali no poste!_Qual poste?_ O do outro lado_Qual? Não estou a ver! _O dali, o sinal!_Isso é do lado de cá. _Sim, esse!_ A D. Lurdes nem por sombras imaginaria a verdade. O Antunes a bichanar a uma miúda "És boa!", o namorado a vir, ainda com a barba cheia de migalhas do pão de leite, a agarrar na mala dela para não o magoar muito com um soco, e dar-lhe com ela, sem se lembrar do volume e do peso duma mala de senhora, e como ainda por cima, os homens sempre pedem para lhes serem guardadas umas coisinhas, esta ainda tinha lá dentro um alicate e uma chave de fendas.
_Como tu estás, Antunes! Parece que andaste ás cabeçadas a uma parede! Anda cá!_ A D. Lurdes disse ao Antunes para se sentar no sofá, secou melhor as mãos no pano da louça. _Vou-te fazer um penso_ e foi buscar desinfetante e mais material necessário, e num ápice, transformou a cara do marido numa maquete dos Himalaias, feita com compressas e betadine.
_Olha, vou á farmácia_ e a D. Lurdes foi-se arranjar. Deu uma penteadela nos cabelos, e vestiu a roupa que tinha para lá numa cadeira, e olhou-se no espelho: "Não estou lá muito bem, mas também só vou ali".
O Antunes ligou a televisão, puxou uma cadeira e pô-la à frente do sofá para esticar as pernas:Com certeza alguém vai contar à Lurdinhas. Vai ser complicado de resolver!
_Encontrei a Deolinda e o filho, e o míudo disse uma coisa esquisita. Eu estava a contar o que te aconteceu e ele só dizia: Saco! Saco! Mas tinha um chupa chupa na boca e não percebi muito bem_
Ah, Lurdinhas, deves ter ouvido mal! O miúdo até estava lá e viu! Anda cá ao pé de mim! A D. Lurdes chegou-se a ele e disse _Pois, se calhar ouvi
A D. Lurdes gostava de crianças. Tinha passado a infância da sua menina a levá-la a casting atrás de casting, com horas de espera, no meio de multidões, na esperança de a ver participar numa novela das oito, mas a miúda gostava mesmo era de ainda não ter de gostar de nada, só deixar o tempo passar, sem pressa, e não se empenhou muito.
_Mas ó Licinha, eu tinha que fazer um penso! Ele tem a cara toda deitada abaixo!
_Mas não está assim muito bem feito, mãe. É porque é que andas com essa bata? _Sim, fui á fruta e bebi um café_mentiu. A filha encolheu os ombros_ O pai é tão distraído! Como é que foi bater no poste? Estava a olhar para quê? Olha, uma rapariga lá da faculdade, que mora aqui perto, veio beber um café à rotunda com o namorado, e um velho meteu-se com ela, e o namorado defendeu-a, agarrou na mala dela e deu com ela nas trombas do velho. Ficou aflito de o ter magoado, mas o velho disse que não era nada......., espera lá, mãe... Achas que o pai..., e as duas olharam -se em silêncio por segundos. A D. Lurdes desligou o fogão e seguiu a filha até à sala.
_Fala, mãe!_
_Ó Antunes_ A D. Lurdes torceu as mãos uma na outra_Não levaste com uma mala na cara, pois não?_ O Antunes, com a expressão tapada pelo volume das gases e dos adesivos, até que foi quase sincero.
_ É pá
, foi um mal entendido, eu disse Lisboa e els perceberam "És boa"_Mas ó pai, disseste Lisboa, assim do nada? _É que estava apensar que tenho que ir a Lisboa um dia destes, e pelos vistos só me saíu essa palavra._Ele realmente às vezes fala sózinho_Mas diz assim só uma palavra? Solta?_eu reparo lá quantas palavras ele diz!_Ó pai, e o que é que eu digo à minha amiga? _Olha, nem digas nada que eu ia desmaiando com o peso da mala! _Ó Licinha, deixa lá o teu pai, coitado!
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sábado, 11 de julho de 2015

A Idade, ou Homenagem ao Homem velho e Sua Esposa

Os ossos
logo ali
debaixo da pele
e filhos
tão velhos como eles.
Noventa e um
e noventa e dois anos
elegantes e belos.
De passo leve
amigos juntos
os ossos
logo ali
debaixo da pele
há sessenta e tal anos
unidos num tempo
sem memória.
O branco,
a cor do sangue
das camisolas
juntos os ossos
erectos
logo ali
debaixo da pele.