Tudo começara num fim de tarde em que fora despejar o seu, gostava de o fazer na frescura daquela hora, quando todos já se encontravam recolhidos nas suas casas e na azáfama do jantar, e também era bom porque acabava por dar algum movimento ao corpo, para ele não se dasabituar.
Vira, ao abrir o caixote carregando o pé no pedal, um saco com velhos brinquedos sem préstimo, e achara graça ao marinheiro sem um olho, a dois cubos coloridos e inúteis, um vermelho e o outro amarelo, tão amarelo que lembrava as matizes do fogo, uma cor que valia a pena preservar.
A partir desse dia, sempre que lhe era possível, evitava fazê-lo se estivesse alguém a passar, por exemplo, ou não arranjasse justificação que dar a si mesmo para se dirigir aos caixotes, Jacinto agravessava a estrada e caminhava o resto do passeio até lá chegar. Depois levantava, com a ajuda do pé direito, a grande tampa verde, e espreitava, com olhos perspicazes, os sacos e saquinhos que lá estavam dentro.
Um saleiro substituído, uma colher de pau, uma lista de compras, "cebolas, manteiga, leite..."
Por vezes, quando chegava e havia espaço na mesa da cozinha, o homem admirava os obectos que acabara de expor para si mesmo, olhava-os como troféus, mas se chegasse cansado dos degraus imensos até ao segundo andar, ou o tampo de madeira transbordasse de coisas, deixava por ali o que recuperara, assim, tal e qual vinham da rua, dentro do plástico desbotado do saco azul.
Eu via o homem, daqui da janela, sem que ele se apercebesse.
Olhava-o com a curiosidade com que olho para toda a gente, via-o nos seus processos difíceis de remexer o que estava no lixo e de lá sacar o que julgava fazer-lhe proveito, e levar.
Dias depois, voltava a acontecer e eu olhava, com um ombro encostado à esquina da parede e com a atenção de sempre.
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