domingo, 31 de maio de 2020

VELOCIDADE

São nove e cinquenta.
A manhã há muito que acordou.
Durante a viagem, do centro à periferia, tinha escolhido as palavras que julguei certas, mas, como sempre, temía que, ao chegar a casa, quando olhasse para trás, o livro não estivesse lá, pousado sobre o piano. Não posso perder nenhum. Eles andam comigo para todo o lado. Alguns são tão pesados que quase carrego às costas o peso do mundo, e é também neles que escrevo momentos de distração, com rabiscos descuidados.
Curiosamente, perseguia-me a composição de uma ideia, daquelas com pés e cabeça,
Os livros andam sempre comigo, muito embora me obriguem a um  esforço suplementar  e me atrapalhem os movimentos.
Contudo,
aranhas mortas passam a esconder-se em pequenos quadrados amachucados de guardanapo, como se nunca ninguém o tivesse descrito, ou efetivamente valesse a pena fazê-lo, e é isso que aponto num canto de papel em branco, porque há sempre lugares de papel em branco nos livros, que aproveito, até ao dia em que morro e deixo de inventar.
O discurso incoerente começa a fluir, e é escrito rapidamente nessas folhas. A história empolgante cavalga pelos campos, ou pisa os passeios de marfim da cidade de pedra e toda a gente anseia por encontrar a página seguinte, para perceber a que se deve um  desgosto tão profundo ou mesmo uma alegria tão poderosamente estimulante e vigorosa. Então, acabamos um e começamos outro.
É impossível resistir.
Mas, para que se prossiga, é necessário ir até ao fim, sempre até ao fim, mesmo dos acontecimentos que nada nos dizem.
Adquirem-se aleatoriamente, usam-se, e arrumam-se  no  caos, não é a ordem que lhes dá corpo, nem que os engrandece.
São precisamente dez e vinte e quatro, quando descubro, à #velocidade estonteante de algo muito urgente, que preencheram as paredes que eu própria acabei de elaborar, com centenas de volumes, em detrimento de verdadeiras utilidades, por exemplo, numa prateleira onde antes estava o microondas, havia-os agora, deitados uns sobre os outros, rendidos, já, do esforço de serem lidos, talvez...
Muito se passava debaixo da luz amarelada dos candeeiros, mas o quê?
E estavam escritas as palavras certas, para que os pensamentos vogassem, indefiniveís e autênticos, à procura de serem lidos. vorazes como animais esfaimados, caçando solitariamente.







terça-feira, 26 de maio de 2020

#Ressonâncias


A cabeça pendia-lhe do pescoço
como se tivesse adormecido
dentro de um dos livros verticais,
arrumados nas prateleiras.
Até os óculos, de hastes metálicas,
lhe caíam, em câmara lenta, pela cana do nariz.

Ainda tivera entendimento para lhe gritar:
_É... Tu! Vai conversar ali com aquela
que está dentro do barco, sobre o armário.
Eu não tenho tempo para fantasias!_
mas depois, adormeceu.

Andava verdadeiramente incomodado
com a sua busca de inspiração nos sonhos,
um encanto doentio que lhe provocava
tantos dissabores.

A verdade é que a cadeira balouçava
sem que nada, nem ninguém,
lhe provocasse
os movimentos basculantes.

As árvores centenárias abraçavam-se
e bichanavam
palavras mornas umas às outras,
mas o sono impedia-o de as ouvir.

Quando assim adormecia,
segmentos de reta de colares
de pequenas contas
projetavam-se para se arrumarem
de outra forma,
com a precisão milimétrica
que os poemas
ocupam numa página aproveitável.

Muito devía
a um certo encantamento na paisagem,
que lhe atravessava a pele, vindo de lugar nenhum,
ou...
talvez viesse do poente extraordinário
que se manifestava, indiscutível e real.







Margarida Diplidénia acaba de chegar do #Quénia.
_Trago sempre um leão._ anuncia. _Gosto destes caprichosos reis da selva. Este é muito jovem,mas tem-se mostrado bem mais calmo, ultimamente.  Refreou-se-lhe mais aquela vontade de trincar tudo o que mexe e usa uma tiara de flores do campo, sempre que as há. No inverno, balda-se de minha casa, da casa da ministra, veja só! Percorre o jardim, salta o muro, brinca um pouco com as abelhas na savana gelada que lhe fazem cócegas ao espetar o ferrão de umas no focinho do outro,  e ele ri-se, como um pateta.
Quando se aborrece de estar ali, aí sim, inicia a sua grande aventura pelas montanhas cerradas de floresta. para apanhar os melhores medronhos de toda a  região transcendentorial. que só crescem lá no topo dos topos, onde até os pássaros têm falta de ar.
Senta-se numa cadeira de baloiço ali abandonada por seres extraterrestres, que a lá deixaram  na perspetiva de voltar um dia para descansar naquele local aprazível, e adormece.
Dorme ali uma sestinha, e depois volta, com ar comprometido.
São tão inteligentes! E gulosos!













segunda-feira, 25 de maio de 2020

Uma #Paciência De Morte

As estrelas de maio 
caem, sem ruído 
sobre a terra.
Partem-se no chão e 
os seus estilhaços
aguçados projetam-se 
para todo
o lado, ferindo. Quando,
definitiva
e finalmente morrem,
irradiam sobras de luz.

Esses restos mortais,
brilham,
apenas porque se
alimentam
do sol
que permanece
inteiro
no ar,
só porque
não é uma estrela
de maio.
Essas
caem sem ruído
sobre a terra
mas, antes de
caírem,
levam com elas
um pouco
da alegria
de cada um
para outros
universos.


sexta-feira, 22 de maio de 2020

O Bom Vento

O vento demorava a chegar.
Vinha do mar mais ao fundo
tocava ao de leve a sua superfície
passava as fronteiras de espuma
passava a areia molhada
rasava e rasava o areal
e atingia as dunas
onde levantava os mais finos grãos.
Chegado à aldeia contornava o casario
entrava pelas casas
que o deixavam entrar
entrava pelos vidros entreabertos,
galgava os telhados,
vinha pela ponte,
espreitava para dentro dos automóveis
fazia esvoaçar madeixas de cabelos
de mulheres
que contemplavam o brilho prazeroso do sol,
ia flutuando sobre a terra,
ia bailando, com a sua lentidão exagerada
os seus bailados invisíveis
até surpreender as folhas das árvores
do outro lado do rio
e fazê-las bichanarem os seus assuntos de folha
que não são para aqui chamados.
Chegado ao local, assumia novas direções,
e uma nova estratégia para a liberdade
completamente diferentes do seu habitual.
E, no lugar de entrar por todo o lado,
vinha direito a mim pela rua principal,
passava os plátanos, sem lhes tocar,
nem uma flor se mexia nas trepadeiras dos jardins,
porque primeiro tinha que me alcançar.
Eu esperava por ele, de pé,
ou sentada na ponta da varanda,
a ver a roupa a enrolar-se sobre ela própria, no estendal,
a senti-lo na pele desprotegida da cara,
nas mãos agarradoras de coisas, nos olhos secos.
Era assim que acontecia, constantemente,
o vento era mesmo assim, tinha imperativos.
Primeiro, conversava comigo,
e só então se desvanecia, até um outro dia,
quando quisesse regressar.








quinta-feira, 21 de maio de 2020

Quando o avô Casimiro ficou parado em frente ao prato de sopa, com a colher já em sentido ascendente, estática e cheia de feijões e pedaços de couve,  a família,  reunida em volta da mesa, começou  a chamar por ele:
_ Paizinho, está a ouvir-me?_
_ Avô, coma que eu também tive que comer. Ó mãe. ele não está a comer tudo._
_ Ti'  Casimiro, cu, cu! Olha o aviãozinho!_ disse a prima Esmeraldina, entusiasmada, enquanto lhe tirava a colher da mão e a rodava aleatoriamente em frente aos olhos, como se alguém comesse com mais vontade por estar na presença de um avião enlouquecido.
Mas a verdade é que ele continuava sem  se manifestar, e muito menos fazer qualquer movimento. 
O esperto da famíla, o Gabriel, armado em doutor, começou com as suas palavras caras. 
_ Não há uma certa #lentidão nos seus olhos? Receio muito o que lhe possa estar subjacente._
_ Cala-te!_ respondeu~lhe o o tio Inácio, irmão dele da parte da mãe
_  Só me faltavam agora as tuas merdas. Abana-o aí, a ver._
Gabriel, sempre evitando responder no mesmo tom às rudezas do irmão, e como estava ali ao lado, deu um toque no ombro do avó Casimiro e ele foi resvalando da cadeira, tombando para o lado contrário, até se estatelar no chão. 
A tia Adélia levantou-se num rompante, nervosíssima,
_ Logo este fim de semana, que ia expô-lo na Bienal de Barcelos, é que ele me cai. Andava tão direitinho! tinhamos chance em duas categorias, "O velho mais direito da europa" e "o mais engraçado". Ai se ele não me fica em condições..._
_ Paizinho, está a ouvir-me? Ó Sãozinha, já viste, ele nem me responde. Paizinho! Falta acabar a sopa. Então?_ e, enquanto falava com a mulher, foi-se debruçando sobre o corpo para o observar com mais atenção. 
O Gonçalito, que não conseguia deixar de se intrometer, qualquer que fosse o acontecimento, já estava ao pé do avô, de espada na mão, joelhos na carpete e chapéu de pirata. Atravessou-lhe a espada que entrou por um ouvido e saíu pelo outro. 
_O avô está normal. Ontem a espada também passou bem por aqui._ anunciou.
A tia Adélia espumou de fúria e ia a gritar qualquer coisa, mas Gabriel, veio em defesa das crianças. _ Eles estavam comigo. Eu supervisionei._ 
_ Ah... O avô tem dois feijões secos enfiados nas narinas. Quem é que fez isto?_ exclamou o miúdo_
"Este Gonçalo é mesmo delator", cogitou Sara, a filha da vizinha, que andava sempre por ali. 
_ Fui eu, porquê? Qual é o problema? Já foi a semana passada e agora é que dás por isso. Parvalhão! Era para a ajudar a concorrer para "o mais engraçado, D. Adélia. Foi por bem._ e fez o  melhor sorriso inocente que sabia fazer.
A tia Adélia derreteu-se toda. Gostava mesmo da miúda.
_ Sim, querida. Não faz mal. Eu também já comprei um ramo de violetas para lhe coser à cabeça.
Gabriel, que gostava de ser o centro das atenções, começou a ficar danado com aquela gente toda de volta do pai.
_Olha, vamos levá-lo daqui. Sãozinha, onde é que o ponho?_
_ Ó homem, nunca sabes de nada! Na arca!_ disse Sãozinha bem alto, mas foi-se chegando ao marido e, discretamente, segredou-lhe _ Quando a Adélia se for embora, mudamo-lo para temperatura ambiente, que ele não se estraga, Isso são manias da tua irmã lá por causa das festivalices. E aquele espaço faz-me falta . Queres, Gonçalinho? _disse, virando-se para o filho, com um sorriso maroto e esticando a mão para lhe dar o apito que tirara do bolso do avental.
A criança ficou feliz. Adorava ir apitar para a rua.











quarta-feira, 20 de maio de 2020

Rasuras

Limpeza das pedras, uma a uma, para não arranjar sarilhos. Nada. Zero.
Um cheiro abominável só desapareceu, esfumou-se, quando abriu a janela toda para trás.
O ar circulante acabou por dissipar o que havia para dissipar, e lá foi ele, contrafeito, rever o texto pela milionésima vez.
Todavia, o sem número de vezes que o fez, não se revelou suficiente para lhe topar as imperfeições.
Era um mau estar impossível que o perseguia vezes sem fim. A constatação de que morreria igual aos outros, com um medo igual ao dos outros, mais uma morte vã.
Olhava para aquilo tudo e via uma imagem invertida, ininteligível, estariam as palavras viradas ao contrário, com os sentidos certos a debaterem-se contra o reflexo errado do espelho?
Uma verdadeira guerra que perpetuava sem querer.
Para não incomodar muito, não ia agora incomodar as pessoas com os seus disparates, participava sózinho no combate das letras contra o tempo, e acabavam perdendo todos juntos, por falta de justificação.
Nada de novo. A vergonha e o medo sem força nenhuma, superados pela vontade, como nos vícios delirantes ou nas dependências calmantes, essa vontade que não o largava.
Corria-lhe nas veias, ou entrava por elas, talvez, nunca sabe o que precisa, nada, zero, qualquer coisa que se envolvia devagar no sangue, numa transfusão sucessiva de nutrientes imprescindíveis enriquecendo o fluxo, que se obrigava depois a um ritmo perfeito. Disparates.
O maior logro a que já alguma vez assisti.
Então, e por causa da limpeza das pedras, uma a uma, e para não arranjar sarilhos, voltava a colocar os olhos no que estava escrito.
Primeiro rodava-os abrangendo a parte possível do escritório, depois espetava o nariz em várias direções para inspecionar o regresso do aroma a coisa nenhuma que tanto lhe agradava, e tentava concentrar-se, mais uma vez.
Tendo a janela aberta, o espanta espíritos tilintava de quando em vez. Eram os versos deslocados, presos por fios,  pequenos avisos no meio daquela trapalhada toda, "olha que isto não é uma brincadeira. É melhor soltares-te de vez.
Foi condição suficiente para garrar em si e partir para o outro lado do vento.
Sentou-se o mais confortável possível no ponto mais distante da capacidade dos seus olhos, no lugar mais ao fundo da paisagem, com os antebraços apoiados num parapeito desconhecido, e observou.
Focou bem os olhos. Lá estava ele, bebendo pequenos golos de água, sentado em frente ao computador.
"Se me tivesses deixado fugir atempadamente, não teria de usar estes binóculos para observação de pássaros, e, após uma quinta feira diferente, numa terça feira abominável, tudo voltaria a acontecer.

20/052020


segunda-feira, 18 de maio de 2020

#Quarentena 1500

Foi capaz de me comover, uma carrinha de caixa aberta que passou cheia de flores de cores vivas para os jardineiros salpicarem aquele esplendor em verde.
Nem brinco, quando digo que me deixei envolver pelas árvores e que os duendes que lá estavam não me incomodaram uma única vez, enquanto passeava pelos trilhos sombrios que as suas copas cobriam prendendo os raios de sol luminoso que ficavam retidos em luz nas folhas.
Nem Alice ali chegou, nunca, onde ela consegue chegar, por onde onde passa, com a sua leveza tridimensional, e aquelas rodas que nem sequer chegam a tocar no chão terroso.
Quantos portões de ferro se apresentam à minha frente, pelo caminho, nem preciso atravessá-los para sentir o peito, os olhos humedecidos por causa de uma carrinha com flores que estupidamente me surpreende.
Plátanos vulgares, esse desgosto só meu, impõem-se, atingindo, com os anos, a dimensão de gigantes inenarráveis, fazendo-me sentir criança uma e outra vez.
Os seus troncos são tão largos que não os consigo abraçar, nem eu, nem ninguém é capaz de o fazer, e por isso eles se mantém assim, solitários.
Ela foi à minha frente, dando cor ao musgo e às pedras. Em cada canteiro se via o trabalho iniciado, o saltitar do cão junto à estátua, junto à fonte dos amores, nem Alice se atreveria a chegar tão longe, porque Alice nunca existiu e eu estava ali.





domingo, 17 de maio de 2020

Um dia de #Quarentena

Conta-me
o fundo da água,
nesta pequena baía
iluminada pelo sol,
que,
num dia acidental,
o mar perdeu o brilho.

Nem sei eu como
vim aqui parar.
para ficar a olhá-lo,
turvo e infantil,
a chapinhar na areia
da praia
trazendo e levando
uma bola encarnada
que flutua nas ondas,
breves,
enquanto o sol se põe.


sábado, 16 de maio de 2020

mnj

A noite acabou acabou numa manhã estupidamente primaveril.
Os cães passeiam na rua, obedientes. não há cães que corram, como eles gostam de fazer. Passeiam-se mutuamente, em boa verdade, os seus donos também não correm, partilhando o mesmo problema de sempre.
Os homens e as mulheres que passeiam os cães são bons, os cães são bons cães, a relva é uma excelente pessoa, os cagalhões de todos os mencionados são bons, são subliminarmente vida, por isso também gosto muito.
As cores, com as quais até tenho um ótimo relacionamento, hoje não estão não me soam bem.  e a poeira nos vidros nunca foi tão evidente.
Ou seja,

A minha avó Zinha
tinha um gramofone
oferecido pela vizinha
embrulhadinho
com celofane, e uns atilhos
de serepilheira
feitos à mão

A minha avó
Zinha
ofereceu à
vizinha
um #gramofone
embrulhadinho
com papel
celofane
e preso com uns
atilhos
de serepilheira
feitos à mão.














quinta-feira, 14 de maio de 2020

Seguimento De Rascunho Para História

_Não vou acertar nada. Não é para que todos leiam, são frases libertadoras, redentoras, talvez. Vou deixá-las ficar ficar sem nexo, enquanto observo os patos a voar, outra mentira das minhas,  porque os patos não demoram nem três segundos a percorrer o curto espaço por que é composta a minha janela.
Contrariamente ao habitual, tinha uma capa negra a cobri-la, ou talvez não tivesse, mas o candeeiro junto ao muro que a alumiava, nessa noite estava apagado e não era apenas ela que se vestia de escuridão.
Estranhei, mas com Lídia tudo era possível, que mudasse, os gostos, os objetivos, a direção, o estado de espírito, com a rapidez e a elegância de um felino e a violência de uma tempestade, de forma que fiquei a ver se empurrava a velha porta para entrar na casa devoluta, coberta de hera forte que serpenteava os seus troncos entre as pedras, entre os buracos onde outrora tinha havido vidros transparentes e a madeira dos caixilhos houvera sido jovem e bela.
Entrou. Nos primeiros minutos, nada aconteceu, mas, ao fim de algum tempo, uma eternidade para quem está com pressa ou um lapso insignificante para quem nada tem agendado que fazer, pareceu-me ver desaparecer a casa, lentamente, que todos os seus átomos se iam desligando, e que, deixavam entrar a noite pelas suas disjunções, e a casa e as árvores do seu jardim, tudo o que os envolvia, se tornou tão fino e tranlúcido que acabou por se misturar completamente nas vivendas da rua de cima, no café do senhor Joaquim, lá ao fundo, à esquina e na pequena mercearia para lá da estrada.
Desde essa noite, nunca mais vi nada de extraordinário, ne terreno baldio em frente a minha casa, a Lídia parece-me estranha, ausente,e o gato, até o meu simpático e adorável gato, recusa deitar-se nas suas pernas e evita  a sua companhia.

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Interlúdio

Apenas
com o norte a
um canto,
e uma tinta
bonita e verde,
retiro das folhas
dos plátanos
ou de outra
árvore qualquer,
o silêncio e os
pássaros
e o ruído cristalino
de alguma
chuva crescente,
e que imagino
marcando a terra,
primeiro em fio
de nascente,
e depois em rio,
correndo como as
ondas,
para trás e para
a frente,
até o mar vir ter
comigo
onde eu quiser.


quarta-feira, 6 de maio de 2020

A História do Gato que Falava #Língua_Portuguesa


Passou a noite e o animal julgou
perder todo o seu mistério,
toda a sua poesia habitual.
Percorreu a casa, tranquilamente,
procurando a luz do amanhecer
nas janelas viradas a nascente.

Não era seu hábito tartamudear,
responder hesitante,
mas naquela manhã,
afirmou-me não lhe importarem
os versos para nunca mais.
Tinha sonhado outra vez com bolas de sabão,
que saturação,
que rebentavam no ar , inconscientes.

Olhava para mim, muito triste,
como se alguma coisa de perigoso
lhe toldasse o pensamento.
"não há nada que consiga reinventar,
elas que rebentem. se quiserem,
A mim, assombram-me a noite,
como se eu não fosse um gato.
E depois fico ensombrado pela
noite assombrosa,
e já não há nada a fazer."

Mas como os gatos não são de
gastar muito em palavras
olhou-me uma última vez,
e foi-se enroscar no tapete esverdeado
de frente para os vasos das flores.
E que lindo que ficou, como sempre,
quando o sol despontou e se deitou
sobre o seu corpo indolente.





domingo, 3 de maio de 2020

RASCUNHO

A Lídia ligou à cerca de vinte minutos.
É normal ligar para avisar que vem mais tarde.
O jantar está no forno e preparado inteiramente. É só aquecer um pouco no microondas, isto se por acaso já tiver arrefecido muito.
Se ela não comer, tratarei de lhe dar uso amanhã,  umas sobras de comida têm sempre proveito.
Enquanto espero por ela, entretenho-me a limpar algumas coisas sujas. Só pormenores, nada de grandes movimentações, que envolvam baldes e esfregonas e aspiradores. Não. Só pequenos cantos, arestas, reentrâncias que vão ficando para trás nas limpezas rápidas, como se por um acaso os segundos que iríamos perder com esses detalhes, naquele momento,  fossem relevantes na rapidez dos nossos dias e nos fizessem falta para outra minudência qualquer.
O telefonema foi rápido, "Beijinhos Adriana! Estou atrasada, até logo!"
A páginas tantas, fiquei sentada na beira da cama, o telemovel carregava precisamente junto à janela, sobre a mesa de cabeceira, recordando o brilho dos seus olhos, enquanto contemplava a minha moldura favorita coberta de plátanos verdes.
Algures entre o norte e o sol nascente, existem esses lugares sem pontos cardeais. onde estamos situados, de vez em quando,  virados  para lado nenhum,  e como cada maluco tem as suas manias, já sabemos, crescia-me a vontade de trocar estes dias por uma coisa diferente.
_Vê lá o que fui sonhar, estávamos na praia, uma pequena baía paradisíaca, como há tantas por aí,
O mar era como são todos os mares, um manto estranhamente belo e perigoso, só que não brilhava, e apresentava-se quase como um grande lago, inofensivo e calmo, mas, logo que metíamos os pés na água  que espraiava na areia suavemente, ela puxava-nos para dentro, como se um gigante aquático nos agarrasse vigorosamente pelos tornozelos e,
com as suas mãos enormes, camuflado pela opacidade da água, para nos fazer submergir.
 a superfície daquele grande mar sem fim, era verde ou azul, não sugiro nenhuma das duas cores, mão hábil, essa que a misturou em partes exatamente iguais.
 Dizia-lhe, um pouco atordoada com a sua insistência._vou lá agora escrever sobre estes tempos de espera, monótonos e de certa forma apaziguadores, os tempos em que somos todos fragilmente os mesmos, seguindo todos as mesmas regras, onde é que isso já se viu! Todos a respirar ao mesmo tempo! Esse tempo nem existe, verás um dia destes.
Aula de ginástica começou:
 Um, dois, um, dois, e a manhã a passar tão rápida e tão incompreensível quanto o habitual.
O volume das camisolas de lã estava diretamente relacionado com a construção de frases com palavrões, daquelas que se desenvolvem desmesuradamente,
Pegam-me pela mão e acompanham-me, muito simpaticamente, até ao final do papel.
Alguns, transportam-nos para os limites dos seus mundos helicoidais e voláteis, verdadeiros ciclones no meio da tempestade.
Tornados e turbilhões tão intensos que nos puxam pelo medo e pela curiosidade, acompanhando-nos toda a viagem, até ao fundo, entrelaçados connosco,


tanto quanto é forte a relação de amor, ódio que tenho com o silêncio.
Nenhuma palavra será escolhida ao acaso, ou, as que se me revelarem as mais belas.
Escondia-me debaixo das luzes intensas da pista de dança, vestida de bailarina louca e feliz.
Aquela importância que dava à necessidade de entender o fundamento das ordens, antes de ser obrigada a cumpri-las.



E então, numa espécie de concentração involuntária e única, os olhos mudavam-lhe de maré, para, no final, endireitar tudo, a minha Lídia.

Debaixo das sobrancelhas, mesmo ali sobre os cantos, as rugas, tornavam-lhe o sorriso encantador e mesmo com as bocas  tapadas pelas máscaras,

e nas têmporas, duas linhas quase invisíveis vincavam sobre os cantos das sobrancelhas. Muito bom, ferramenta fundamental para percebermos quem, por detrás da máscara, permanece a sorrir.

Muito obrigada pelo seu trabalho, incansável e eficaz, e, não esquecendo a sua dedicação extrema.
Não gosto de medir o mundo por mim.
Naquela casa abandonada, entra, sempre à mesma hora, todos os dias, ouço ranger o portão enferrujado, e vou espreitar por entre as cortinas. Veste-se de cores garridas que me provoca, não sei por que fenómeno incompreensível, a vontade de  pintar o mundo inteiro daquelas cores. Depois atira o portão com tal violência e rudeza, que o metal fica a ressoar durante algum tempo e faz-me abandonar a vontade de colorir.
Ela insiste........................._Lembras-te de quando fizemos uma curta viagem ao tempo dos morangos?_Sempre foi assim, persistente e encantadora.
"Não é tarefa fácil ajudar as pessoas a morrer, ou a suportar os atrozes sofrimentos da dor, por exemplo. lidando com a morte antes de ela se revelar para toda a gente.
Nem agora nem sempre." Frases soltas no meio das páginas. Incompreensível, na verdade.

O esgotamento nos provocam os serviços a abarrotar de gente, a nossa atenção também virada para os que pouco estão doentes, mas resolveram ir ali, e exigindo respostas rápidas, tão rápidas quanto as de quem está urgentemente a precisar delas.
Rimo-nos como loucas, sentadas à mesa da cozinha, num dia em que chovia tanto lá fora que os passeios encharcados mais pareciam pistas de dança

Gastei uma página inteira para tentar descrever a beleza das flores e nem por isso consegui.
Não havia imposição de limites possível para o seu espírito livre,  ou louco, não sei, insistia que um tufo de margaridas não deixava de a importunar um pouco por todos os lugares, pedindo-lhe visibilidade e espaço na história, e que, e foi tão insistente que ela acabou por ceder.
Não se arrependeu. Todos os cenários se alegravam desde que não caísse a noite.
 Não me sai da cabeça o passeio salpicado de pequeninas flores
Flores, flores, flores! Para ela tudo tinha flores, era uma vida inteira cheia de um disparate de flores,
Recordações com dois mil anos? Siga para bingo, respondia-me com o seu positivismo habitual.

Aula de ginástica: Um, dois, um, dois, e a manhã a passar rápida e tão agradável quanto o habitual.
O volume das camisolas de lã estava diretamente relacionado com a construção de frases, porque estas se desenvolviam desmesuradamente, até formarem tornados que nos transportam para os limites dos seus mundos helicoidais e voláteis. Ciclones na tempestade.
Pegam-me pela mão e acompanham-me, muito simpaticamente, até ao final do papel.
Alguns, transportam-nos para os limites dos seus mundos helicoidais e voláteis, verdadeiros ciclones no meio da tempestade.

_E daquela vez, Lídia, daquela vez em que a tia Lina que se encheu de amores pela velha secretária, passava o dia a limpá-la com óleos e panos.
Até tropeçar no tapete e bater com a cabeça numa das suas esquinas.
O tio  Alfredo explicando, incansável, como, a módicos preços, fazia a sua coleção de viagens longínquas e arrebatadoras. O Pedro e o João debatendo ideais inesgotáveis entre os golos de café e as trincadelas no bolo de nozes.
Para a Lídia, cada frase tinha a sua medida e o seu peso, por muito leve que fosse a normalidade do convívio dos jantares de Natal, ela ia lá repescá-las, naquela selva imensa de conversas de família.
O meu filho veio visitar-me e eu disse-lhe, claro, a "Lídia está cá outra vez!",
e ele  carregou o semblante, assumindo um ar preocupado.
Atira o portão com tal violência que o metal fica a ressoar durante algum tempo.
Tal e qual como o gato, que afia as unhas sempre na mesma perna da mesa. O gato, pois... Quando quer sair da sala, senta-se em frente à porta fechada, uma esfinge silenciosa e até a sua presença e a sua vontade se tornarem tão fortes, que eu me levanto para o deixar sair.
Nesse dia, estava em baixo, segurava a cabeça com a mão direita aberta em quatro dedos pressionando a testa e o polegar uma das têmporas.

Éramos tão jovens, e os nossos corpos envolviam-se de tal forma um no outro, que julgámos amar-nos incondicionalmente. Para mim, era a sublime descoberta de um desconhecido que, incompreensivelmente, parece querer-nos bem.
Aproveitámos uma nesga de sol para ir dar um passeio, ah! Não podemos, pois é, talvez também não possamos esperar pelos desígnios do que tem de ser.

Às vezes, a raiva crescia-me duma forma violenta, o ódio, esse sentimento perverso e inadmissível, aflorava-me o pensamento e fazia-me bem.
Deus ia morrendo nos meus braços, velho e imprestável, matando inocentes, castigando aleatoriamente, pedindo-me contas, carregado da maior frieza, de todos os milhares de vezes que me debrucei sobre as macas distribuindo palavras de amor, gestos de conforto absolutamente desnecessários para ganhar ao fim do mês o meu ordenado sempre igual.