sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Alice olhava a terra impregnada de água e o cão a chafurdar metendo o focinho e as patas na lama, provocada pela repentina chuva que caíra fortemente há minutos.
Os automóveis, que de madrugada eram raros, começavam a passar agora com maior regularidade. Ouvia-os percorrer a estrada, que passava em frente à entrada de sua casa, ouviam-se nas traseiras, o ruído passava pelo caminho desimpedido entre garagem e portão. O gato, e apesar da indiferença que por vezes gostava de demonstrar, também estava presente. Vaidoso, e para se fazer notado, cabriolava no chão de pedra, entre as folhas molhadas. Aquele gato gostava muito de água, o cão também, e vai daí os três vinham para a rua sempre que davam pela chuva a começar.
Após o aguaceiro inesperado, que nem lhes deu tempo para se abrigarem debaixo de nada, como faziam habitualmente, e que coincidiu com o amanhecer, o sol abriu e espalhou luz pelas superfícies molhadas.
As asas de Alice estavam tão ensopadas que a menina não as conseguia erguer, a sua fina e translúcida espessura carregava agora um peso extraordinário, e a miúda deixou-se ficar ali parada para elas secarem um pouco até que a mãe a chamasse, para mais uma repreensão após ter cometido um dos seus  irresistíveis crimes de criança sonhadora.
O cão trouxe na boca a suja boneca desenterrada e depositou-lha no colo, afastou-se um ou dois metros e começou a sacudir o corpo energicamente para expelir a água do pelo, que se expandiu  em gotas pérola que se cravaram em todo o lado, e  Alice viu-as caírem sobre si.
A mãe chamou-a de lá de onde estava, encostada à ombreira da porta, com a cabeça repousada por uns momentos na ripa de madeira.
Ela mal conseguia regressar por causa do peso invulgar que carregava nas asas.
Cada passo era difícil, custoso, mas Alice fez o esforço possível e continuou, seguida de um cão obediente e de um gato que se esfregava no muro, fingindo-se absorto na sua vidinha, mas, em boa verdade, mais atento à situação  do que qualquer outra criatura viva que por ali estivesse a apreciar o primeiro sol da manhã.
Ao cão e ao gato não lhes foi permitido entrar.
Mas que asas, Alice? Uma toalha turca rodou suavemente pela sua cara de criança, passou-lhe pelos cabelos, onde absorveu uma grande quantidade de água, e desceu, em idênticos movimentos circulatórios agora mais enérgicos, até à camisolita branca. 
Quais asas? Sonhaste. A mãe passou-lhe a mão pelas costas e, com delicadeza, tirou-lhe o brinquedo das mãos, explicando-lhe que precisava de ser muito bem limpo.
Alice sentou-se no sofá a ver televisão. Encostou-se, com muito cuidado, à superfície florida do tecido, esperando que este absorvesse pelo menos parte do líquido que tanto lhe pesava e que quase a impedia de se mexer.
Olha para isto, Alice, tudo tão encharcado à tua volta. Nem entendo... Nem entendo...







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