sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Eu vi a voar uma peça de roupa presa por molas a um estendal.
As duas mangas da camisa empolavam de tal forma que,  com maior atenção, era possível imaginar fazerem parte de um corpo desajustado, tal era a inquietação do vento.
As molas, esforçadas pelo peso da camisa balançavam como doidas, e as mangas...
não digo  que dançassem as suas mangas, pois não  havia harmonia nos seus movimentos.
Uma peça de roupa soltou-se de um estendal.
Era uma camisa branca, com braços gordos aflitos, que balançavam sem descanso até ao momento em que se soltaram e percorreram que passava sobre as casas na sua deslocação ondulante.
Foi cair num beco.



Eu vi a voar
uma peça de roupa
de um estendal.
Uma camisa branca, talvez...
pelo menos 
duas mangas brancas eu vi
balançando como doidas, 
inquietadas pelo vento.

As molas resistiram 
até dado momento,
mas, 
esforçadas pelo peso 
do tecido molhado 
acabaram por libertar 
o corpo inteiro
do qual faziam parte
aqueles dois braços agitados
e, convenhamos,
com grande falta de harmonia 
nos movimentos
Depois soltou-se, 
não sei se já disse, 
mas ainda ondulou sobre 
dois telhados,
e uns quantos automóveis
estacionados
mas foi perdendo velocidade
E acabou por cair
num beco.








quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Um Conto Para Meninos Céticos

Todos os dias a pequena Edmunda depositava uma oferenda à porta da #floresta.
Os meninos mais céticos desconfiarão de haver uma porta para a dita, mas acontece, senhores meninos céticos, que esta era uma floresta encantada, e vai daí que tinha uma porta, por sinal até muito bonita, em madeira toda pintadinha de um alegre vermelho vivo, para disfarçar a madeira do carvalho que morrera em estranhas circunstâncias.
Era assim que funcionava tudo o que se relacionava com aquele bonito e denso bosque no meio do nada. Tudo era aproveitado e reciclado, a árvore morrera e os seus familiares, as árvores mais chegadas em termos de genética, logo trataram de produzir mobílias e afins.
Mas, voltando ao que interessa, Edmunda, nesse específico dia, tinha colocado um saco cheínho de olhos de vários animais e pessoas no sítio do costume, prevendo que no dia seguinte, quando regressasse com nova saca de prendas, a mãezinha dela todos os dias  preparava qualquer coisa, pois ninguém se atrevia a provocar a ira dos entes que ali residiam esquecendo tão importante obrigação, já lá não encontrasse nada.
Pela janela, Edmunda com a curiosidade inerente às crianças, espreitou para ver o que se passava no cerrado bosque. Não vos esqueceis senhores meninos, de que esta é uma floresta encantada, condição que lhe permite ter uma janela, pendurada dir-se-ia que em coisa nenhuma, ao lado da porta de entrada, e pintada da mesma e animada cor.
Lá dentro estava muito escuro e os olhos da criança levaram um tempo a conseguir habituar-se às trevas, de forma que não teve, nos primeiro segundos, qualquer reação ao perigo, pelo que não ofereceu a mínima resistência quando o grande salgueiro, com as suas hastes compridas e flexíveis, e pelo espaço deixado pelos vidros inexistentes, a arrancou do sítio onde estava, envolvendo-a pela cintura, e a transportou para os confins da escuridão, julgando tratar-se de mais uma dádiva daquela boa gente.
Senhores meninos céticos, eu, se fosse entidade estranha em floresta esquisita, eu própria poderia ter confundido. Nem tudo o que parece, é, nem tudo o que é, é, nem tudo o que não é, é. Por vezes o que é,  não é,  o que não é,  é, ou o que é, é. É mesmo assim.










sábado, 9 de setembro de 2023

Bruma

Ressurreição de Jesus ajoelhou-se em frente ao frigorífico. Naquela posição chegava melhor à sujidade que estava mais no fundo.
"Valha-me a virgem santíssima", pensou com os seus botões quando verificou como se encontrava o electrodoméstico, "que nojo! Nem um milagre põe isto outra vez em condições".
Bem acocorada naquele canto, Ressurreição  tinha até a cabeça já um pouco enfiada dentro do congelador, tanto assim era que pequenos cristais de gelo teimavam em agarrar-se-lhe ao carrapito e inclusivamente prender-lhe os cabelos ao teto da pequena arca, prosseguiu a difícil limpeza utilizando um detergente próprio para merda agarrada às coisas e, com ele, esfregar as nódoas mais difíceis. 
Em pleno movimento circular, a sua mão direita, a esquerda estava comprimida contra o chão para lhe dar equilíbrio,  rodava incessantemente e com vigor.
Nisto, a velha senhora percebeu formar-se à sua frente, subindo em espiral e rapidamente se espalhando pelo compartimento, um fumo, uma névoa, uma #bruma, não sei, a senhora, em todos os anos que foi viva após este incidente, foi incapaz de explicar o que era exatamente aquilo que assim lhe apareceu do nada. Ainda tentou fugir, mas desta vez o cabelo estava bem agarrado à superfície gelada  e só à terceira ou quarta tentativa esforçada conseguiu retirar a cabeça, infelizmente perdeu a parte superior do penteado, que ficou pendurado como uma anénoma, bem no centro do congelador, para logo, e muito rapidamente, devido à exposição ao frio a que estava a ser sujeito, passar a assemelhar-se a um lustre muito bonito.
Com lustre, ou sem ele, não é  um simples objeto que destrona, em capacidade de pôr as pessoas felizes, aquilo que Ressurreição presenciou, do meio do nevoeiro, ou neblina, ou poeira, talvez, não importa, materializou-se uma santa, de porte pequeno, parecia, inclusivamente, que aquele espaço tinha sido feito à sua medida, uma coisa linda de morrer, a santa mais bela e proporcionada que Ressurreição de Jesus alguma vez vira, ou viria a ver.
"Cheira a lixívia", disse a mini Senhora, com o seu ar bondoso. "Minha pobre mulher, venho conceder-te o milagre que tanto imploraste. Olha!"
Assim que proferiu estas palavras, a Senhora congelou e rachou em mil pedaços de gelo, até  o seu corpo desmoronar inteiramente, fazendo um ruído insuportável.
Ressurreição teve a maior surpresa da sua vida. No lugar que a santa ocupara estava agora um saco com legumes congelados marca branca.
Há muito por aí quem diga que o milagre foi incorreto, que houve um erro, um equívoco, um engano, que aquele milagre era para outro lado, mas eu estou do lado dos que afirmam que foi muito bem pensado e feito, porque Ressurreição de Jesus tinha uma alimentação muito errada, e mudou completamente a sua forma de estar.
Os seus cabelos, hoje em forma de belas estalactites,  são artefacto mantido no local e preservado pelos familiares.


sábado, 2 de setembro de 2023

Puma tinha três filhos, Larica, Topia e Maria da Ressuscitação,  cujo nome, por ser a mais pequena, sofrera já influências da esforçada evangelização a cargo do padre Alcénio que a ela se dedicava naquela aldeia perdida nas montanhas desde os seus vinte e poucos anos.
Larica nunca tinha constituído problema, crescera, até áquele momento da adolescência,  de uma forma tranquila e obediente, mas Puma estava com muita dificuldade em conter Topia, que desde cedo mostrava tendência para a transgressão. 
Cansada de inúmeras chamadas de atenção,  naquela fase que o menino atravessava e que, claramente, parecia ser a pior de todas ao momento, ultrapassara os limites quando mandara a avó bardamerda em plena cerimónia religiosa, a  preocupada mãe resolveu pedir ajuda ao padre que, aliás, iria incorrer na missão pela milionésima vez, sem sucesso, e sempre a pedido da mãe deseperada.



sábado, 13 de maio de 2023

O homem julgava encontrar-se sózinho naquela ilha, de forma que ficou surpreendido quando, após ter desenterrado a garrafa, presa na areia molhada por pouco, mesmo ali à beira da água, trazida pelas ondas compridas que enchem a maré, leu o que estava escrito na mensagem que ela transportava dentro do seu corpo de vidro.
O objeto, cilíndrico e baço,  boiara pela superfície da água, viera ondulando e estacara por ali, já na fase em que as ondas começam a retroceder e abandonam umas quantas coisas na praia.
Havia dois dias que  estava preso na ilha. Acordara atordoado e nem a noção  do tempo parecia ter, julgou-se em abandono total, o desespero tendia a invadi-lo, embora estivesse a lutar com todas as suas forças para isso não acontecer. 
Foi natural e humano que, vendo uma folha de papel dobrado, invenção inequívoca do ser humano, prova provada da sua existência, sentisse, de alguma forma, um certo alento, nem que se tratasse apenas de um recado de duas ou três palavras, e a esperança de que a garrafa não  tivesse percorrido um oceano para ali chegar, e, por consequência, um maior afastamento.
Tadeu retrocedeu uns metros, para se sentar na areia seca, e, com a ajuda de um lenho de arbusto que o vento empurrara das dunas até ao areal, e gestos meticulosos, tratou de retirar o pequeno manuscrito de lá de dentro e salvá-lo da sua prisão perpétua, à mercê das ondas.
Não é nada fácil explicar muito em poucas palavras, o que rornava a missiva incompreensível, e para mais que a tinta esborratara das letras e destruíra irreparavelmente o recado.
Ainda assim, ao homem pareceu-lhe mais umas coisas que outras, tendia a puxar o sentido da mensagem para algo esperançoso, uma sugestão, por menor que fosse, para acordar do pesadelo que parecia, afinal, ser a própria realidade.
Então, onde podia ter lido, alguma frase irrelevante, daquelas que viajam à tona da água imortal, naufrágios de cem anos e outras memórias desnecessárias, ele julgou antes tratar-se de uma 



sábado, 15 de abril de 2023

não vou mentir

Não vou mentir 
Foi a beleza que me levou a ti.
Passavas, atento, 
como um animal predador 
que passa pelos ramos mais intrincados na selva, 
sem nada nem ninguém dar por ele.
assim tu passaste, passaste por mim, não me lembro de ouvir os teus passos, nem tão pouco te ouvi falar, nessa época eras de poucas falas, muito diferente do que és hoje.
Para te arrancar um pedaco de coração, só tinha que o prender com alguns fios invisíveis que guardava no blusão.
Foi a beleza que nos vimos, após demorada observação da nossa forma de levar à boca um cigarro, ou um pedaço de maçã, , ou num livro, ou numa faca, nem sei porquê.
Não vou mentir, nunca menti, todos sabem que é mentira ter sido a beleza que me levou a ti,
foi outra coisa mais linda ainda do que ela, metida nas mãos nos bolsos, por causa do cabelo endiabrado que o vento me  empurrava para os olhos.
Foi a beleza que me levou a ti e lá me deixou, ao teu lado, até um momento qualquer, 
Não vou mentir, a sombra da minha mão escreve contraluz, não eu.

Eu não sou poeta deixo para eles os acasos em cada canto do meu quarto e as borboletas e outros insetos repetindo movimentos helicoidais, 




sexta-feira, 3 de março de 2023

Qualquer Um

O Rui dissera ter-lhe deixado uma mensagem debaixo da tábua solta do costume. A arrecadação feita de forma tosca em barrotes de madeira, deixava várias saliências, ranhuras, esconderijos  nas madeiras da casa tosca.colocadas  junto ao chão para reforço da estrutura tosca que os pais e os avós erigiram com o intuito de guardar certas ferramentas e outro material que utilizavam na horta.
Simão preferia ali ir quando o sol estava mais alto. Ainda era muito cedo para que conseguisse liquefazer em transparente a geada branca que cobria as ervas. 
E lá estava ela. Era um papel dobrado em quatro, uma folha quadriculada, quase certo que arrancada do caderno de matemática, escrito em letra de criança  haveria um enigma que ele tinha que esclarecer.
De início, os bilhetes tinham mensagens fáceis de descodificar, "brilha uma luz no fundo do poço", foi simples. Havia três poços,  apenas, dentro do universo que se atreviam a explorar, um, tapado com uma grande roda de cimento, outro com proteções em ferro forjado, onde assentava uma engenhoca para puxar água de lá debaixo, e um terceiro sem qualquer intervenção humana, um grande buraco, junto a uma nascente, onde cresciam silvas verdejantes e outra vegetação traiçoeira alimentadas pela abundância  de água na terra onde viviam.
Tinha sido óbvio que se tratava do segundo, já que era impossível para duas crianças arredarem aquela roda pesadíssima que cobria o primeiro, e do terceiro els não chegavam perto, sabiam, por inúmeros afisos dos adultos, tratar-se do mais perigoso.
De forma que Simão se chegou ao segundo poço com o objetivo de desvendar o mistério, e, de facto, o balde da engenhoca estava metido lá  para baixo. Bastou-lhe, com algum esforço,  convenhamos, puxar a pesada alavanca e rodá-la para fazer emergir o balde, mas lá  conseguiu e, dentro dele

sábado, 11 de fevereiro de 2023

Um feixe de luz azul
atravessava o caminho,
à minha frente,
uns metros antes da curva.
E enquanto permanecia,
e não morria
nos choupos
do outro lado da estrada,
eu deixava-me 
enlevar
naquela inclinação morna.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Era uma vez um reino onde governava um simpático rei que tinha três filhas.
As três jovens eram muito diferentes umas das outras, também fisicamente, mas sobretudo no que dizia respeito ao caráter. 
Ninguém diria que tinha sido educadas pela mesma mãe, nem pelas mesmas aias.
A mais velha era muito má  e odiava pobrezinhos, a segunda, a do meio, era-lhes indiferente e evitava cruzar-se com eles para não  ter que se chatear, e a terceira, mais novinha, era muito bondosa  e até os procurava para poder dar largas a tanta generosidade, porque se o não fizesse era consumida pelos remorsos.
De forma que, quando viajavam pelo reino, fossem sózinhas ou acompanhadas, procediam de formas diferentes, sendo que, Anastácia, a mais velha, se os encontrava pelo caminho, fazia-lhes todo o tipo de sacanices, Herberta, a segunda, nunca viajava sem que os seus batedores seguissem primeiro para que à sua passagem já estivessem tapados com grandes mantas, ou mesmo velhos cortinados das grandes janelas do palácio e que tivessem sido substituídos por novos. Quando eram famílias numerosas ou mesmo grupos, havia coberturas ainda maiores para que nem um, se cruzasse à sua frente.
A mais nova, a cândida e bela Margarete, pelo contrário gostava de ir olhando em redor, enquanto a carruagam puxada por cavalos atravessava as aldeias e os lugarejos, na esperança  de encontrar pelo menos meia dúzia deles para distribuir moedas e sobras de comida.
As três irmãs, embora muito amigas, evitavam viajar juntas, uma vez que os seus gostos diferiam imenso, sobretudo no que respeitava à pobreza.
Ainda assim, Herberta e Margarete conseguiam fazê-lo não  interferindo muito com o bem estar uma da outra. Herberta mandava tapá-los antes de passarem, mas havia sempre uma criança irrequieta, ou um velho com mobilidade reduzida que ficavam descobertos, e então Margarete mandava o cocheiro parar a viatura e dava-lhes sempre qualquer coisinha. Se fossem crianças um rebuçado, ou outra guloseima qualquer, se fossem adultos um naco de pão, ou mesmo uma moeda.
Naquele dia iam as duas para um workshop com o tema "Príncipes e Princesas, que perspetivas?", quando passaram por uma enorme manta feita de retalhos pelos próprias mãos das pobrezinhas mais velhas, e resolveram parar um pouco por ali para descansar dos solavancos.
Herberta não ligou ao grande tecido volumoso que se encontrava ao seu lado, mas Margarete, atenta, percebeu que atrás do tronco de uma das árvores que se encontravam em cuja sombra se mantinham,  havia alguém escondido. 
"Deus queira que seja um pobre, mas com a sorte que eu tenho, ainda me calha uma raposa ou um esquilo." E com este pensamento foi-se aproximando, muito devagar e silenciosamente do lugar pretendido. 
_Apanhei-te!_ exclamou, ao agarrar numa menina com o monco a sair-lhe do nariz e de cabelo espesso e empastado. 
Margarete sorriu, embevecida. _Como te chamas, pobrezinha?_
A criança assustou-se e começou a chorar. Quanto mais chorava, mais ranhosa ficava, e a princesa de imediato sacou de um pacote de lenços de papel e deu-lhe. 
_Toma, minha querida. E dou-te um papo seco, também. É tudo para ti._ proferiu sensibilizada e de olhos húmidos.
_Vamo-nos, Margarete! Estamos a perder tempo!_Herberta, de costas para a irmã, impacientava-se.
_Vamos, mana. Vamos. Não olhes agora._ E, dito isto, subiu o degrau da carruagem, que partiu puxada pelos cavalos a galope.

domingo, 15 de janeiro de 2023

Sempre à procura das palavras adequadas e elas, irremediavelmente perdidas, as coisas a crescerem imóveis, e eu a escrever numa página que ninguém  encontrará.
Só existe o murmúrio das árvores, 

"O fogo tendia a alastrar, agitava os seus braços traiçoeiros em redor.
Alguém estaria, indevidamente, por ali, ouvi ruído vindo da sala ao lado.
Uma figura excêntrica estava parada na porta que liga as duas divisões e olhava para mim.
O seu cabelo, em filigrana de prata grisalha, apontava as pontas, como setas, num estranho sentido ascendente, vestia roupa em desuso, grandes rosas vermelhas destacavam-se estupidamente do estampado da camisa, e uma saia, de um plissado com cor indefinível, tal como o verde do inverno é difícil de descrever, descia-lhe até aos tornozelos.
Pequenos focos de chamas teimavam em surgir, junto à lareira, mas fora dela, e eu tentei apagá-los, meticulosamente. Um aqui, outro ali, enquanto alguns troncos resvalavam, incandescentes, para o chão."

Enquanto olho pela janela do autocarro, e vejo pessoas que passeiam e outras que apenas passam, são estes os cavaleiros da triste figura que nem conhecem os refúgios da cidade silenciosa das manhãs domingueiras, quando convivem, sem medo do chão, pombas e gaivotas, invento histórias.
E quantas #Zicas vão morrendo e renascendo ao longo da vida de Zica, de Susana, de Viriato, de Raquel, de João e de Madalena?