quarta-feira, 21 de novembro de 2018

A Mulher da Gabardina ou " O Último #Zuavo em Dia Errado

Parecia aquela mulher da gabardina, que sempre esperava o autocarro quando eu passava em frente à paragem.
Podia ser logo pela manhã, com a sua frescura a entrar-nos em força pela pele, ou à tarde no meio das horas em que poucos andam na rua, ou mesmo à noitinha, quando as sombras começam a desvanecer e a cidade ganha tons prateados, até imergir na noite encantada dos candeeiros artificiais.
Podia ser qualquer hora, que lá estava ela, ou de pé, encostada com o ombro direito à estrutura metálica, ou sentada, fingindo ler.
Ou tinha as pernas cruzadas e as palavras cruzadas no colo.
Nunca lhe vi a cara.
Só a indumentária, as botas altas, até ao joelho gordo, a gabardina gorda, a mala gorda que transportava sempre consigo, cheia de tralha.
Coisas que lhe caíam pelo caminho, da sacola que transbordava, eu ia apanhando.
Acabava por vê-la sempre ali.
Chegava primeiro, e punha-se à espera uns segundos antes de mim.
Usava sempre gabardina, de verão e de inverno, porque chovia para lá do tempo conhecido.
Esse tempo era o curto  intervalo entre nós.
 A gabardina da desconhecida não precisava era  ter aquela cor tão morta, tão cor de água turva, ou baça.
Uma réstea de qualquer coisa que agarramos sem existir.
Lá estava ela, e eu, divididas.
Como se um machado certeiro nos separasse em duas metades iguais.
Os seus dedos gordos, onde um grandioso anel se sentia sufocado e tentava respirar, arrumavam as coisas muito rápidamente, e eu, deslumbrada pela perícia das suas mãos, deixava-me ficar a olhar, embasbacada.
 Sentindo-a como, muito provavelmente, se sente a presença de um fantasma.
Perdia ali pelo menos uns cinco minutos, de cada vez, mas nunca lhe vi a cara.
 Nunca a olhei diretamente com medo de não lhe encontrar os olhos.
 No seu lugar, podiam estar dois berlindes de pedras rosáceas fazendo reflexos hipnotizantes.
Um dia, deixei de a ver.
Foi quando um pássaro desconhecido, de asas largas e bico comprido, foi encontrado morto atrás de um banco de jardim.
Repousava numa grande poça de lama, onde navegavam  três botões de madeira vogando calmamente junto às margens do beje ondulante.
Quando veio o bom tempo, e o sol secou as coisas molhadas,  encontrei, meio enterrado na terra argilosa, o meu anel dos encantos.








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