Em boa verdade, também ninguém se atrevia a ir pelo meio da estrada, apesar do perigo não ser nenhum, por não ter onde se segurar, pelo menos quando estava tudo encharcado, propício à queda, ninguém se atrevia a caminhar longe das beiras dos muros, ou das hastes das trepadeiras que lhes acudissem a uma aflição
Nesse dia, e apesar de ser a milionésima vez que andava a pé pelo passeio, habituadíssima à humidade escorregadia cobrindo todas as superfícies deixando-as melosas e traiçoeiras, deixei-me resvalar.
A queda não foi violenta, ainda me agarrei ao galho de uma buganvília, mas atrapalhei-me e e o que consegui foi apenas arrancar-lhe duas folhas que permaneceram na minha mão até ao fim.
Talvez a dinâmica do tombo tenha tido alguma coisa a ver com o facto de eu ter rolado pela rua abaixo, com os olhos fechados e os braços a protegerem-me a cabeça, ou talvez em qualquer jeito, ou pose, aconteça, e a qualquer um, convenhamos que esta rua é mesmo muito inclinada, só sei que, pelo tempo que ia rebolando por ali fora, já teria passado a minha vivenda há muito, que fica equidistante entre a primeira das vivendas e o último portão, o que está mesmo virado para a subida, sempre aberto, como se fosse a grande boca de um animal grotesco, capaz de engolir tudo o que lhe apareça à frente.
A rua angulosa obrigou-me a continuar a rolar, a rolar, a rolar...
Passada uma infinidade de tempo, senti-me a diminuir de velocidade, quase parando, sem que a minha vontade fosse responsável por qualquer dos meus movimentos, e, finalmente, embater contra algo bem sólido, estancar, e parar por ali.
Abri os olhos e esfreguei o braço dorido do embate.
Havia árvores majestosas para onde quer que olhasse, arbustos florindo para as abelhas e as abelhas iam e vinham pelos caminhos iluminados só pela beleza do sol. Havia borboletas alegres que riam baixinho, pelo menos assim me pareceu, aproveitavam a última luz do dia, acompanhavam-me de perto o suficiente para as ouvir.
Decidi naquele momento ficar mais tempo para ver como seria a noite. Podia ter o privilégio de ver os pirilampos luzindo nos cantos, ver as estrelas nuas, no céu.
Apertava conscientemente as folhas arrancadas à buganvília na minha mão direita, que eu não sou de me deixar enganar, e com a mão esquerda livre, tocar as páginas interiores de veludo das videiras, com as suas uvas tremendamente roxas e redondas, em cachos de cristal.
Passaram talvez umas horas, quando resolvi retornar ao meu jardim, à minha sala de estar. A madrugada não se tinha revelado tão encantadora como tudo me levara a crer, precisava descansar os olhos dos campos de azedas de todas as cores, do gato esfíngico olhando o mar, do muro em frente, da lua enorme espalhando aleatoriamente o seu mistério por todo o lado.
Havia algo de familar naquele lugar, embora, que me lembrasse, nunca lá houvera estado.
Percebi, após alguns minutos de confusão, ter entrado naquela quinta onde ninguém se atrevia a ir. Diziam ser assombrada, mas assim numa primeira impressão, era dos locais mais aprazíveis de todos os que me foram dados a conhecer.
Confesso que me deixei ficar porque a beleza das coisas era tanta que fiquei extasiada, nem me lembrei de feitiços ou maldições, entrei pelas reentrâncias, pelas pedras escavadas em escada no meio do nada, bebi água duma fonte dourada, porque já estava com alguma sede, e segui caminho.
Depois de várias voltas à toa, acabei por me perder.
Terei, talvez, adormecido escondida numa sombra, exausta e sem qualquer orientação. E assim, a dormitar levemente, lembro-me vagamente de um vago sonho que sempre acabo por ter.
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