segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Não Era Um #Unicórnio

Querida Roberta
Não sei de onde te escrevo.
Vê lá tu que ontem, estando uma noite brilhante e amena, sentei-me aqui no terraço a olhar o oceano, tu conheces a casa e conheces-me a mim, sabes como gosto de usufruir desta imensidão das noites à beira mar, sobretudo em lua cheia, por causa do brilho de tons prateados da água, e da sua solidão. 
Acontece que, olhando sem atenção alguma para os pormenores da paisagem, alheia, demasiado envolvida pela atmosfera para o fazer, dou por mim a reparar em qualquer coisa, bem lá ao fundo, quase a tapar a linha do horizonte, nuvens como sombras agregando as suas silhuetas incertas umas às outras, formando formatos de um corpo gigantesco e imaterial.
Conversando com os meus botões, como se apraz dizer, de início pensei, de facto, que fossem nuvens, mas, e apesar de nos segundos seguintes ter outra vez dispersado o meu pensamento, quando voltei a olhar, percebi haver algo de estranho naquela imagem que se ia compondo à minha frente, formando, com a sua lentidão, um estranho ser.
Para além do tamanho exorbitante e do aspeto aterrador, não entendo como, em alguns minutos, surgiu semelhante criatura, dando consistência  e volume a meia dúzia de nuvens que, momentos antes, pareciam não existir.
Estando sózinha, a Carla fora encontrar-se com uns amigos que estão  aqui de passagem, não soube bem o que fazer, telefonar para a polícia seria absurdo, chamar alguém  próximo, nem que fosse para testemunhar, era impossível,  sabes como a casa está num lugar isolado, e, confesso, comecei a encher-me de receio, o suficiente para me impedir, também, de pegar nas chaves do automóvel e fugir nele, porque achei que ficaria mais vulnerável, ainda, perante aquele monstro que se aproximava deslizando, entre o céu e o mar.
Senti-me petrificada, observei o cigarro a queimar, transformando-se num pequeno tubo de cinza instável que acabou por cair, vi a sua morte, fumado até ao filtro, tombando na laje do terraço, sentia os olhos fixos, ora nos meus pés enfiados nas chinelas e queimados do sol, ora na sombra que galgava a superficie da água, cobrindo o brilho do luar. Dir-se-ia que alguém que não eu os comandava à distância, aos meus olhos, sem a minha intervenção  consciente, alienando os meus gestos, prendendo-os à sua vontade poderosa, tão grande como a  figura monstruosa e escura que avançava na minha direção.
Ouvi, claramente, a Carla a entrar, procurando-me pela casa enquanto me chamava, e ainda vi, bem de longe, a sua pequena figura incrédula a aproximar-se da grade da varanda.



sexta-feira, 27 de agosto de 2021

A Marina

A marina continha os barcos aprumados, 
olhando as luzes da cidade, enquanto
a noite se revelava na escuridão  
da água em que vogavam.
O mar deixava-se prender em lagos artificiais
de lados iguais,
quadrados de água escura, os passeios 
eram animados de gente que se auto coloriam
com os seus chapéus lâmpada pelos 
caminhos de ir e vir.
Os barcos mal estavam presentes, 
pousados sob o céu agudo, tão 
agudo quanto o ângulo das pedras que 
descem até  à beira ondulada da água 
salgada, onde os peixes cinzentos 
espreitam, por vezes encandeados.
Havia gelados por todo o lado. 
Pessoas passavam para trás e para 
a frente, e os barcos lá, escondidos, ou camuflados 
dentro do brilho fosco da penumbra, longe da luz. 
A água continha os barcos, a água pouco
refletia, violácea, impossível de transpôr.





terça-feira, 17 de agosto de 2021

Avançar

Residia, na copa de umas árvores  que cortaram por aqui, um belo gigante da floresta, talvez que tenha escapado, ou se tenha perdido quando a curiosidade por outros mundos o fez afastar-se um pouco para a serra, mesmo aqui em frente.
O meu lado racional apontava, bastas vezes, para uma ilusão de ótica, ou, até, e pela consciência  plena de que  gosto de inventar  histórias, tratar-se  apenas de fruto da minha imaginação,  mas quando ele lá  permanecia, após os verões de folhagem imensa, e mesmo nos invernos despidos, em que  só restam troncos e galhos esqueléticos e quase sem movimento, lá estava ele, de perfil carrancudo, enorme e silencioso.
Durante muitos anos fez-me companhia, na sua vida silente, apenas incitada pelo vento, de quando em quando, mas não sou pessoa de não  perceber a diferença  entre a linguagem de um mítico gigante e o murmúrio de uma corrente.
Quando as árvores  foram cortadas, o meu desgosto foi grande. Imaginei o pior, vê-lo a morrer lentamente, prostrado  no chão, porque iria morrer abraçado às árvores, que têm, como sabemos, uma forma vagarosa de morrer.
Mas como a memória se prende com o #avançar  do tempo, e a minha não  é  exceção, fui esquecendo a minha companhia, 
Certo dia, num dos meus passeios por esta bela serra onde me agreguei, espero que para sempre, admirava eu os velhos plátanos, a sua beleza notável e majestosa, numa certa distração,  pois quanto mais acedemos àquilo que é formidável, menos o valorizamos, reparei por acaso, na forma sugestiva de uma daquelas belas árvores.
Nem tão pouco me recordava de ter concebido, naqueles dias desoladores após o abate, a possibilidade de fuga de tão extraordinária  criatura que sempre acompanhou as minhas reflexões, os meus silêncios, a minha tranquilidade.
Contudo, lá  estava ele, vivíssimo e grandioso, e disponível  para quem o quisesse ver.

Terapia Para os Males do Mundo

Terapia para os Males do Mundo 



Havia uma invasora 
a comer o rio moribundo,
já nem parecia a mesma água 
invernosa,
nem o seu caudal inquieto 
corria como antes.

As árvores foram retiradas.

Mas com o tempo,
deixei de ver da janela
aquelas cicatrizes hediondas,
e o pássaro noturno 
foi resistir para outro lugar.

Imagino debaixo da terra,
as suas raízes invisíveis,
as suas raízes fundas.

Ao momento, os filhos
renascem do chão 
em volta do corpo anelar 
da mãe decepada.

Quando as cortaram
fiquei 
branca como a cal das paredes 
brancas
mas depois, tudo passou.

No outono,
O sol cor de laranja
entardecia-lhes, tanto as copas 
multicolores,
como as folhas monumentais 
e os dias acabavam assim.













sábado, 7 de agosto de 2021

Cidalinha

Cidalinha estava sentada na varanda, numa espreguiçadeira grande de mais para ela. Mesmo sentada de lado, os pés ficavam-lhe pendurados, para aí a quatro centímetros do chão  e ela esticava-os para tocar com a ponta dos dedos na lage fria.
Quem a olhasse, e conhecesse razoavelmente as crianças,  percebia-lhe os movimentos automáticos e distraídos, seguramente com a cabeça noutro lugar, mas porque os cabelos em desalinho lhe tapavam a cara, era quase impossível perceber a sua testa franzida e o seu ar concentrado em pensamentos que  nada tinham que  ver com o gesto automático de balouçar as pernas.
A mãe chegou-se à ombreira da porta e olhou para ela. Era das raras pessoas no mundo que não  tinha necessidade de olhá-la nos olhos para a perceber. Bastavam-lhe as costas ligeiramente curvadas da miúda, ou os bracitos esticados com as mãos  presas na estrutura da cadeira, e mais outros pequenos sinais quase invisíveis, mas que adicionava mentalmente, para, sem esforço, lhe ler os estados de espírito.
Acocorou-se junto a ela e afastou-lhe o cabelo, que desde sempre insistia em revelar-se selvagem, dos olhos perdidos num qualquer aborrecimento de criança, a preencher, enorme, o seu pequeno universo.
Anos volvidos, reparo que  ganhei um belo arbusto florido de uma ponta que  roubei, já faz um tempo, no muro de um jardim.
Novelos corados de lilás formam-se da simples aproximação das suas flores diminutas, fazem-me ir buscar palavras aos confins dos infernos, desassossegam-me tanto... 







quinta-feira, 5 de agosto de 2021

É muito fácil falar sobre gatos, eu sei. 
O seu caráter misterioso e as suas posturas silenciosas, tantas vezes impenetráveis, prestam-se ao propósito  dos contadores de histórias, dos observadores deste mundo, sempre atentos, reféns dos  movimentos em seu redor, ainda que seja apenas uma simplória flor amarela que  abana com o vento, ou a rotina da família vizinha, que se mostra em cadências  diárias, ou semanais, como por exemplo o hábito de receber a família para jantar ao domingo,  ou a criança que chora por diversas noites, atacada de algum incómodo, e que nos primeiros meses mal se conseguia explicar, utilizando choros inconscientes, mas que, no presente momento,  já vai pronunciando palavras simples misturadas nos soluços.
E os gatos, quaisquer uns, esticados preguiçosamete no ambiente.
Por isso temos tantos gatos nos contos, nos romances, nos poemas, muito justamente em papeís principais, ou determinantes, ou desenhados em ilustrações para crianças, atípicos e irreais, ou com a normalidade simples dos animais domésticos, acompanhando inconscientemente  um troço de vida dos donos.
Porém, todavia, contudo, enquanto tilintam, desordenadas, as borboletas de vidro pintado suspensas da frágil armação do espanta-espíritos  que pende junto à janela, sujeito à melodia existente no ar, eu penso que talvez o meu animal seja diferente dos outros, caminhando, vagaroso, como o são todos, numa superfície infinitamente branca e assustadoramente  silenciosa, preenchendo  o vazio com a sua solidão.