Tratava-se de um jovem bago de arroz, é verdade, mas, ainda assim, já possuía algumas memórias e bem se lembrava de estar dentro de um saco de plástico com milhões de irmãozinhos todos iguais. Iguais, não. Isso era conversa de quem nunca tinha privado com eles, porque se o fizessem perceberiam que, muito pelo contrário, eram todos completamente diferentes.
Mas adiante, este nosso baguinho, não se lembrava dos seus primeiros tempos de vida, agarrado à mãe, muito verdinha e elegante, e com as raízes dentro de água, enquanto o embalava balançando ao vento, disso ele não se lembrava, era coisa já muito antiga, só tinha memória de estar no tal saco, muito aconchegado aos outros e com pouco ar para respirar, mas quentinho e feliz.
Tudo se modificou na sua vida quando a família Semedo adquiriu precisamente o pacote onde ele vivia, no supermercado. Ao princípio nem se apercebeu que estava a ser transportado, mas quando abriram o pacote e o despejaram em água a ferver, o baguinho deu conta que alguma coisa de grande relevância lhe estava a acontecer.
Primeiro, sentiu uma grande lufada de ar fresco e não lhe podem dizer que ele não viu, porque ele viu perfeitamente, uma mulher com uma tesoura por cima dele a golpear o saco, e depois só se lembra de ter caído em avalanche, acompanhado por mais umas centenas de irmãozinhos, para dentro de uma panela a ferver.
Felizmente que os bagos de arroz são insensíveis à água fervente. Não lhes faz mal nenhum, eles até gostam da sensação e, no final do processo, até ficam orgulhosos do seu novo estado, muito gordinhos e a cheirar a tomate.
Como tão bem sabemos, a vida não decorre igualmente para todos, de forma que, o baguinho ao invés de ser mastigado e prosseguir o ciclo normal das coisas, ficou preso na cova de um dente de um dos membros da família, mais especificamente, numa do tio Albano, que andava para ir ao dentista fazia um ror de tempo.
Não se pode dizer que tenha sido agradável. Apesar de não ser má a temperatura ambiente, havia um cheiro por ali que teve muita dificuldade em suportar.
O nosso baguinho aguentou-se estoicamente e valeu-lhe muito a pena. Ao final do dia, o tio Albano, com a ajuda de um palito, libertou-o e colocou-o em cima da toalha que, mais tarde, a Francisca sacudiu para o quintal.
Vieram os passarinhos, mais ou menos pelas dezoito e trinta, e debicaram o chão onde ele tinha ficado inerte e, nem meia hora depois, projetaram-no, agora sob outra forma, na laje de pedra.
Vieram as chuvas e levaram tudo.