quinta-feira, 12 de setembro de 2024

O Gigante

 Havia, em tempos, um gigante por aqueles lugares.

Apesar do seu tamanho enorme, raramente era avistado nas aldeias, mas, mesmo assim, aquela gente temia o seu aparecimento, pois que, e apesar de aparentemente não ser propositado, ele, de quando em vez, esborrachava duas ou três casas, meia dúzia de árvores, ou até uma carroça de bois que por ali andasse na sua lentidão, conduzida por algum infeliz através daqueles caminhos rudimentares.

O gigante, figura solitária e desengonçada, tinha todo o cuidado para não estragar nenhuma das pequenas construções que encontrava pelo caminho, ou pisar aqueles minúsculos seres que via no chão, correndo, desvairados, assim que lhe punham os olhos em cima ao se aperceberem da sua presença quando, inesperadamente, ficavam debaixo de uma enorme e compacta sombra.

Eu, não sei porquê, talvez pela inconsciência característica das crianças, não sentia qualquer desconforto, ou receio, quando a minha mãe me chamava, já em modo de aflição de mãe que pretende a todo o custo proteger os filhos, para que nos escondêssemos debaixo de umas rochas de granito que nem a desmesurada criatura conseguiria destruir, ainda que impulsionada por um ataque de fúria qualquer.

O que eu queria, na verdade, era continuar à janela para o ver mover-se até se afastar, vagaroso, pois admirava, e também invejava, percebo agora, as suas passadas colossais sobre a terra.






quinta-feira, 21 de março de 2024

Primavera

Julieta gostava de observar. 
A culpa era da mãe, que desde sempre a mandava estender ou recolher a roupa do estendal.
Quando era muito pequena,  estava tudo tão alto que ela tinha dificuldade em lá chegar,
nem por sombras o seu corpo de criança, de membros curtos, alcançava aquela corda colocada entre duas árvores.
Arranjava estratagemas, velhas caixas e caixotes uns sobre os outros, instáveis.
Subia por duas, ou três vezes até a tarefa terminar.
Um dia, o vento tornou-se tão forte que Julieta perdeu a estabilidade. Agarrou-se à corda, sentia-se tão leve como aquela fronha de chita, ou o seu lençol, que aos seus olhos pareciam balões de festa, os pés minúsculos descolaram-se da pequena superfície redonda do caixote de rede esburacada que a sustinha, a saia inflou, do cabelo nem se fala, mal preso por uma guita sem cor, esse cabelo que se transformou em serpentes voadoras silvando sobre a sua cara de veludo, e ela ficou a balouçar, agarrada pelas mãos ao estendal, como se estivesse também presa por molas a secar.
As rajadas eram tão intensas que a torre de coisas lixo onde se equilibrava tombou e ela ficou sem modo de descer.
Ao fundo, a grande cisterna feita de pedras frias acumulava a água escura, Julieta tinha lá passado ao largo, com um balde de roupa quase maior que ela, tudo era maior que ela, tudo.
Subia não era por causa da roupa, era para ver mais de perto as flores das árvores a largarem as suas pétalas Branca de Neve, e também porque se ouviam melhor os pássaros, alguns entoavam #canções, trinavam versos escondidos atrás dos rebentos das folhas jovens.
 Julieta estava quase a cair,  porque as mãos lhe escorregavam, mas o vento parou de repente.
Julieta gostava de observar, estivesse onde estivesse.
Um tronco de  laranjeira estava a poucos centímetros, um tronco apenas, um tronco salvador. 
Seis andorinhas acabadas de chegar.
A culpa era da mãe,  que sempre a mandava estender, ou recolher a roupa do estendal.
Ela nem dera conta de ter sido socorrida pelas aves, mas, a verdade é que elas prenderam os bicos nos ombros do seu casaco e foi-lhe, então, muito fácil alcançar o ramo inalcançável da árvore.

segunda-feira, 4 de março de 2024

Jade

Jade limitava-se a olhar as flores 
persistentes 
crescendo das ranhuras do alcatrão 
à beira da estrada. 

Já três homens de colete
refletor se abeiravam do tronco
da árvore,
onde encostaram uma escada.

Um deles subiu, na vertical, 
e cortou vários ramos
daquela copa velha,
só para a tornar menos densa,
para que, 
quando açoitada pelo vento,
não tombasse e caísse no chão 
perdendo a sua majestade.

Os ninhos foram respeitados.

E Jade, 
que antes se limitava a olhar as flores
persistentes
crescendo das ranhuras do alcatrão 
à beira da estrada,
passou a estar atenta, também, 
às conversas das aves.



sábado, 24 de fevereiro de 2024

Era uma vez um bago de #arroz.
Tratava-se de um jovem bago de arroz, é verdade, mas, ainda assim, já possuía algumas memórias e bem se lembrava de estar dentro de um saco de plástico com milhões de irmãozinhos todos iguais. Iguais, não. Isso era conversa de quem nunca tinha privado com eles, porque se o fizessem perceberiam que, muito pelo contrário,  eram todos completamente diferentes.  
Mas adiante, este nosso baguinho, não se lembrava dos seus primeiros tempos de vida, agarrado à mãe, muito verdinha e elegante,  e com as raízes dentro de água, enquanto o embalava balançando ao vento, disso ele não se lembrava, era coisa já muito antiga, só tinha memória de estar no tal saco, muito aconchegado aos outros e com pouco ar para respirar, mas quentinho e feliz.
Tudo se modificou na sua vida quando a família Semedo adquiriu precisamente o pacote onde ele vivia, no supermercado. Ao princípio nem se apercebeu que estava a ser transportado, mas quando abriram o pacote e o despejaram em água a ferver, o baguinho deu conta que alguma coisa de grande relevância lhe estava a acontecer.
Primeiro, sentiu uma grande lufada de ar fresco e não lhe podem dizer que ele não viu,  porque ele viu perfeitamente, uma mulher com uma tesoura por cima dele a golpear o saco, e depois só se lembra de ter  caído em avalanche, acompanhado por mais umas  centenas de irmãozinhos, para dentro de uma panela a ferver.
Felizmente que os bagos de arroz são insensíveis à água fervente. Não lhes faz mal nenhum, eles até gostam da sensação e, no final do processo, até ficam orgulhosos do seu novo estado, muito gordinhos e a cheirar a tomate.
Como tão bem sabemos, a vida não decorre igualmente para todos, de forma que, o baguinho ao invés de ser mastigado e prosseguir o ciclo normal das coisas, ficou preso na cova de um dente de um dos membros da família, mais especificamente,  numa do tio Albano, que andava para ir ao dentista fazia um ror de tempo.
Não se pode dizer que tenha sido agradável.  Apesar de não ser má a temperatura ambiente, havia um cheiro por ali que teve muita dificuldade em suportar. 
O nosso baguinho aguentou-se estoicamente e valeu-lhe muito a pena. Ao final do dia, o tio Albano, com a ajuda de um palito, libertou-o e colocou-o em cima  da toalha que, mais tarde, a Francisca sacudiu para o quintal. 
Vieram os passarinhos, mais ou menos pelas dezoito e trinta, e debicaram o chão onde ele tinha ficado inerte e, nem meia hora depois,  projetaram-no, agora sob outra forma, na laje de pedra.
Vieram as chuvas e levaram tudo. 


segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Um #milhão de nuvens no céu aberto

Alice olhava 
para a rua
pela janela 
do quarto. 
De início,  
limitou-se a espreitar 
através dos vidros, 
mas depois
lembrou-se 
da camélia 
vermelha, 
imediatamente abaixo, 
abriu as portadas
e, 
com a barriga 
encostada 
ao parapeito,
inclinou o tronco 
no sentido 
descendente,  
lá estava ela,  
a camélia 
vermelha,
no seu lugar.

Alice esticou
o braço direito
o vento ajudou 
em todo o processo
e fez voar uma flor velha
que lhe caíu na mão.


(Pensava Alice 
naquela coisa ingrata 
que seria morrer 
sem ter olhado
convenientemente
para tudo,
a elasticidade 
das paredes da casa,
aquele enorme salão 
o corredor 
uma verdadeira estrada, 
só faltava escancararem-se 
um dia destes
as portas para o céu aberto, 
e um milhão de nuvens haveria
no céu aberto.)


Esticando os corpos
quase se tocavam.







sábado, 3 de fevereiro de 2024

Se a janela der para as árvores, tanto melhor.
Desse modo
A manhã entra de uma outra forma pela cozinha e os pássaros aproveitam  as horas desse silêncio quase imperturbável para visitarem os quintais. 

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Jardim Zoológico

O leão era o que tomava conta do jardim. Andava sempre muito bem arranjado, com a farda muito limpinha e o boné colocado impecavelmente.
Ainda bem que a volta estava no fim, porque era quase hora do almoço e já sentia uma certa fome. Passou pelas avestruzes, pelos gnus, pelos veados e parece que ainda mais sentiu a fraqueza, mas, felizmente, já  tinha mandado vir da tasca em frente, a Sangue do Bairro, onde trabalhavam maioritariamente símios, habilidosos na preparação das coisas, uma bela peça do lombo cru para a refeição. 
Todos nós, homens e animais, somos tentados pelo poder, e o nosso amigo não era diferente. Vai daí que hesitou em abrir as jaulas dos javalis (ele também sabia que as gorduras não são nada saudáveis,  mas então... era um defeito que tinha), já que era possuidor de todas as chaves, e de lá retirar um bebé com dois meses e com o melhor aspeto do mundo. Todavia, o leão era um animal de grande responsabilidade, gostava de fazer o seu trabalho o mais corretamente possível, por isso controlou-se e esperou, com alguma impaciência, convenhamos, que o macaco da transportadora chegasse com a comida.
Alfonsina, a mãe de um bonito bamby, andava muito preocupada com o filho. Notava cada vez mais que o seu menino franzia aqueles olhinhos negros e grandes, o que poderia querer dizer que precisava de óculos. Ela própria os usava e, às vezes, estes problemas  são hereditários,  de forma que não pensava noutra coisa, naqueles últimos dias. Tencionava pedir uma consulta de oftalmologia para o menino, mas era muito difícil marcar, tanto porque as listas de espera eram grandes, quase todos os animais precisavam, hoje em dia,  de correção para qualquer coisa, até os tubarões tinham, agora, aparelhos para endireitar os dentes e os elefantes passavam a vida constipados, com as grandes trombas cheias de ranho, um aborrecimento.
Após o almoço,  o leão voltou a percorrer o espaço. Verificou, agora de barriga cheia, mais atento ao que se passava em seu redor, que a mãe do bamby não estava nada satisfeita.
Abriu a porta do recinto onde ela estava e chamou-a. 
Ela lá lhe explicou tudo, e ele, meigo, fez-lhe duas ou três festas no lombo, com as unhas encolhidas para não a magoar. 
Golias, o gorila, há muito que não suportava a prepotência do leão.  Bem podia vir com festas e carinhos, de vez em quando, que ele bem sabia como, num ápice, se tranformava no maior predador de sempre.
De forma que, apanhou uma grande pedra junto ao rio, subiu uma árvore com a copa mesmo sobre aqueles dois que conversavam e deixou-a cair mesmo na direção da cabeça do ditador.
Fim